CRIATURA POP DO INFERNO (FRANKENSTEIN GLOBALIZADO)
CRIATURA POP DO INFERNO
(FRANKENSTEIN GLOBALIZADO)
Por vezes a mente libera a intuição da essência, fenomenologias, no estado entre o sono e a vigília. Pessoas que se dedicam às mais diversas atividades de criação desejam entrar nessa condição de percepção privilegiada da realidade, onde a criação flui sem as barreiras às quais se impõe ao ego.
Esse reino duodimensional (do sonho e da realidade) manifestou-se diante de mim, através de uma visualização temerosa. Abri os olhos e a coisa caveirosa, de aparência descarnada, com uma epiderme muito fina, estava sobre um nicho que parecia um grande monitor de Tv, a poucos centímetros da parte inferior lateral, à direita de minha cama.
Observava-me numa posição de serpente descarnada, de aparência supostamente humana. A princípio parecia menor. Quando, com um movimento brusco, de defesa, fixei-me na borda da cama, a coluna empertigada, a Coisa começou a crescer em tamanho e também empertigou-se.
Rapidamente empunhei a maior das adagas próximas à Coisa, e, antes que a visagem esboçasse alguma reação, submergi nela a lâmina da fálica catana em cruz, que estava ao lado da lâmina menor que parecia um obelisco. A aparência repugnante da figura, aliada à invasão de minha privacidade, encorajou-me a empunhar o sabre próximo e introduzi-lo por sob a carne tênue, de músculos trançados, do lado esquerdo do corpo da Coisa.
A lâmina penetrou sob as costelas do demônio em direção ao ombro esquerdo. A movimentação toda aconteceu em alguns segundos. Vi a configuração da comprida lâmina sob a pele, como se a folha laminada da espada tivesse encontrado a bainha apropriada.
A anatomia mefistofélica acolheu, sem reação, a agressão, como se já estivesse programada a aceitá-la. Fiquei a segurar a empunhadura da arma branca, acreditando que, se a soltasse, a simbologia fálica, perderia a possibilidade da interatividade que se seguiu.
A aparência era horrível, ameaçadora, a atitude passiva encorajou-me à fala: “Com essa aparência maldita, somente podes provir do martírio do inferno. Que fazes aqui, Coisa medonha?”
— Eu sou Maya, represento a ilusão em todas as suas manifestações. A ilusão e o sofrimento, que vocês, humanos, chamam de realidade. Eu sou a espiritualidade fraca, pusilânime, da “alma do mundo”, do mundo real e do mundo que vocês, humanos, chamam de virtual.
—Goethe já teorizou sobre você visão medonha. Fala excomungado, você é a alma coletiva dos inquisidores que desejam queimar na fogueira da insanidade a esperança dos brasileiros? Do mundo? E a coisa respondeu, cheia de enfado:
— Eu sou quem sou. Sou a hipocrisia, a submissão, o carnaval das dores, o mundo real, o mundo virtual do faz de conta. Sou a covardia, a patologia feral dos que desejam desestabilizar as gerações sem escolaridade. Eu sou a violência das grandes cidades fantasiada de suposta alegria nos shows da música popular. Eu sou os discursos cínicos e vazios dos políticos do jogo do bicho. Sou a política das ditaduras subliminares da cultura do faz de conta. Sou a corrupção que mina a esperança dos “sem esperança”. Eu sou os comentaristas políticos das mídias que abusam da farsa armada pelos interesses dos bicheiros de Brasília, que tramam contra os interesses mais elementares do eleitor brasileiro. Dos eleitores do mundo.
E a coisa medonha, de aparência repulsiva, os músculos, os grandes vasos, a cabeça, o tronco e os membros sob a pele transparente, mais parecendo um desenho de exposição da anatomia humana numa faculdade de medicina, na qual se estuda os tecidos e ligamentos nervosos. Os grupos de músculos, as artérias pulmonares, o tronco pulmonar, as cavas superior e inferior, o ventrículo esquerdo. O seio coronário, os quadrantes abdominais, as vísceras... Era como se a membrana que forma a superfície externa do corpo, a epiderme da Coisa, fosse transparente. A aparição sobrenatural começou a falar numa tonalidade ressentida, somo se me cobrando um comportamento de acordo com suas expectativas:
Eu represento a nostalgia do poder dos velhos coronéis da herança maldita dos políticos da ditadura. Eu tenho um coração imenso, nostálgico, trago comigo saudades amazônicas da dominação feroz dos antigos senhores da Casa Grande Planalto. Quando a praça dos Três Poderes ainda não havia saído do Rio de Janeiro.
— Represento a “elite” desse país. Deste planeta. Não posso permitir que os políticos sejam influenciados por uma ideologia alheia à dominação milenar das classes populares. A Casa Grande é a Casa Grande, a Senzala é a Senzala. As almas provenientes dos navios negreiros ganharam as cidades do mundo. Seus ressentimentos nunca aplacarão a atuação sobre a cultura neste país. E no mundo globalizado. Sempre será assim.
Pelo visto a assombração havia lido Gilberto Freire.
— Eu sou fã incondicional da literatura do Paulo Coelho. Da literatura totalitária da globalização. Da disseminação da ingenuidade. Da falta de senso crítico. Eu admiro a maneira com que esse autor de livros para coelhos e coelhinhas, apropriou-se da mediocridade de uma geração, dos vazios psicológicos imensos da mente coletiva da juventude, de suas dúvidas e interrogações mais profundas e sinceras, para vender livros aos borbotões. Esse sim é um escritor pós-moderno. Toda a velharia das academias de letras prostrara-se a esse arremedo de literatura.
“Prazer em desconhecê-lo”, respondi. A coisa ameaçou virar a cabeça em minha direção, mas apenas os olhos mexeram-se dentro das órbitas, dirigindo-me o olhar descarnado, prosseguiu:
— Você é um escritor, precisa ser lido. Quanto mais leitores seus livros tiverem, mais você poderá faturar. Ganhar o meu respeito. Vem comigo, faça como o Paulo Coelho, que com seu oportunismo ficou íntimo de minhas necessidades. Eu sou ele usando a si mesmo em benefício próprio. Eu estou inserido felinamente em todos as classes sociais. Eu tenho os contatos que abrem as portas da percepção da dinheirama globalizada. Venha comigo, escreva de modo a agradar os meus gostos, a minha (suposta) sensibilidade.
Eu estava meio zonzo com a proximidade da visagem. Fiquei quieto, quem sabe ela poderia me ensinar algo sobre as dificuldades de ser aceito pelo Mercado. Pelas mentes ávidas de consumir baboseiras.
— Eu sou os editores querendo vender o peixe podre dos discursos literários contaminados pelo oportunismo e a superficialidade. Eu sou a banalidade com nomes diferentes em todos os lugares, fazendo-me passar por literatura. Eu pertenço a uma etnia que se ajuda a faturar em todas as partes do mundo. Eu sou agregado da sociedade ajustada às manhas neo-pós-modernas do faturamento global. Eu sou o filhinho privilegiado do sistema de castas que se estabeleceu nas sociedades pré-históricas atuais, dominadas pela hipocrisia, pela violência, pela narcoditadura, pelas mídias do jogo do bicho, pelas intenções discursivas vazias de qualquer mínimo conteúdo social pertinente às mudanças. Eu odeio mudanças. Eu odeio Ética. Eu sou radicalmente conservador.
E a “Coisa” continuou falando de um modo irritado e megalomaníaco. Contraditoriamente, parecia estar em pleno surto psicótico de autocomiseração. Perguntei-me: “Como um arquétipo da globalidade, tão cheio de poderes, vem dá espetáculo para a plateia de um escritor desempregado?”. A aparição ouviu meus pensamentos:
— Eu sou o espaço Tv visível do qual emerge a grande inconsistência nacional. A patologia do mal sou eu. Eu sou a sociedade cortesã dos interesses da Corte dos fazedores de guerra com sede na Casa Branca, nas centrais governamentais em todos os países deste planeta. Eu sou a “alma do mundo” de um mundo sem cidadania. A “alma do mundo” que confunde literatura com decadência social globalizada pela referência única do consumismo desvairado.
— “Você é horrível, reagi, procura o Pitangui para te fazer uma plástica”, falei como se motivado por uma força natural, sem pensar se ia agradar ou não. A efígie da danação fez que não ouviu e continuou:
— Eu sou os nó que impedem a sociedade de se desatar. Para mim não procede operação plástica. Não há beleza possível na venalidade espiritual coletiva sem limites. Eu sou a estética do mundo sem a mínima morália. O mundo da atualidade. O mundo das manadas em busca do consumo. Eu sou O Devorador. Eu substituí os ideais da juventude que ousa fazer alguma coisa para sair da “alma do mundo” da fraude, da insanidade, das carências tatibitates, da sobrevivência encabrestada pelas ideologias de um padrão perceptivo caduco. Senil. Esclerosado. Efêmero.
— Eu luto para que a riqueza continue concentrada em mãos de poucos. Um mundo onde as pessoas já nascem velhas, fanatizadas por um simulacro de “educação” que as prepara para uma vida de velhacarias. Eu substituí a Guerra-Fria, pela guerra urbana da narcoditadura sob comando, comunicação e controle das milícias urbanas, nas quais existe apenas um vencedor: as “elites” armadas de ativos financeiros, que faturam horrores com os horrores da violência, das drogas, da corrupção.
— Eu sou a suposta ignorância elevada ao grau extremo, a ponto de fazer, não sei o quê para acabar com toda essa algaravia. Eu não quero descriminalizar as drogas: isso levaria uma fortuna imensa das mãos dos policiais, juízes, parlamentares e desembargadores do judiciário subornados pelos barões do tráfico.
— Quero manter as “majestades” togadas, fingindo uma suposta grandeza, enquanto por baixo da mesa são sócios majoritários da narcoditadura. Preciso que a “elite” representativa dos poderes dessa sociedade venha das camadas mais baixas, para que mantenha sempre em mente o quanto foi difícil chegarem aonde estão, e não queiram concorrência social que lhes tornaria a vida mais difícil, se houvesse nesse país, investimentos em educação. Neste país e no mundo.
Simplesmente a Coisa estava se posicionando como dona da verdade social do país. E do mundo. Quem realmente a Coisa está pensando que é? Como se tivesse lendo meus pensamentos, logo respondeu:
— Eu sou o “lobby” no Legislativo atuando em causa própria para que a descriminalização das drogas nunca aconteça, para que a maior parte dos salários de alguns conhecidos parlamentares, não vá para o ralo da legalidade. Eu sou o criador de milhares de empregos em farmácias e em empresas de refino e distribuição de coca, de modo que a marginalidade continue armada até os dentes, e a “Pato mimesis” social do criminoso cromagnon nato prossiga em manifestações crescentes de uma bestialidade urbana cada vez mais intensificada. A bestialidade da manada que conduziu 58 milhões de robôs, ou máquinas biológicas instrumentalizadas pela mentira, às urnas e à bestialidade do 8 de janeiro de 2023.
— “Deus do céu, exclamei, você é o terror generalizado. A própria pilantragem auto afirmativa. A Coisa continuava sobrecarregada de autocomiseração.
— Eu sou as taras dos descendentes dos australopitecos, que neste país fazem valer a realidade da nacionalidade Nelson rodrigueana. Eu sou quem sou que faz circular o sangue vampirizado da desesperança nacional nos shoppings centers dos corações solitários. Eu sou a manada que se concentra nas centrais de milhares de consumistas do comércio lojista de produtos industrializados.
— “Por que você não vai aparecer para os políticos, os juízes, os parlamentares, os desembargadores? — Perguntei com ênfase, com raiva. A Coisa tinha me despertado de um sono bom, depois de noites mal dormidas.
— Você é retardado, cara? Não vê que sou o coração tenebroso da doença emocional da nacionalidade? Da universalidade? Eu te privilegiei com minha presença, e é dessa forma que você me agradece, seu filho da puta? NÃO VÊS que eu sou a patologia política das trevas, dos vencedores e de seus vencidos. Eu sou o espírito crítico que não morreu, que não morrerá jamais. Porque sem mim, o que vocês chamam de bem inexistirá.
Nem pude me sentir ofendido, porque em verdade ele tinha razão. Mas a raiva de estar sendo agredido verbalmente em minha própria casa, me conduziu a uma reação: “Por que você não vai encher o saco da puta que o pariu”? Se é mesmo tão poderoso, por que perde tempo comigo? Você não vai me convencer a fazer parte de sua turma!
— Você precisa me ouvir com humildade. Não se zangue nem se enfade. Detesto ver alguém com seu talento querendo usá-lo para tentar mudar os paradigmas milenares dessa sociedade. Paradigmas vigentes desde os tempos da serpente do Paraíso, desde muito antes dos construtores das pirâmides. Respondi, meio pulsional mente:
— Tenho direito à imitação do Quixote. Os moinhos de vento hoje são muito mais reais. A Coisa, como se fosse o Marlon Brando de "O Poderoso Chefão", fez um gesto de cabeça, como quem entrou numa profunda conjectura, a face e a fala cederam lugar à uma intensa melancolia, como quem começa a desistir de seu intento, por vê-lo impossível de se realizar. E disse meio sem graça:
— Eu me sinto muito só quando sei que perdi alguém para minha mundividência. Por isso estou aqui, convidando você a escrever historinhas para adolescentes e prostitutas com “know-how” um tanto quando sadomasoquismo. Eu gosto mesmo é de escritos tipo “Onze Minutos”. “O Alquimista”. “Diário de um Mago”. “A Espiã”. Estou te oferecendo o sucesso editorial no mundo das manadas de coelhos.
Isso não é um convite, respondi, é tentativa de cooptação subliminar. Minha perplexidade me impedia de ser menos formal, aquela coisa era tanta coisa, que por mais que eu quisesse mudar a direção do discurso supostamente autocomiserativo dela, eu não conseguia. Eu era simplesmente parte dela. Daquele organismo monstruoso que crucificava milhões, bilhões de pessoas, à uma cultura da mediocridade e da subserviência, e, ao mesmo tempo, falava em nome delas. "Quem é você realmente assombração? Por que eu, espectro, marmota, visagem?
— Meu nome é legião. Eu sou pago, socialmente, manter a humanidade doente. Sou a legião interminável de almas penadas em precário estado espiritual, intelectual, de sobrevivência cultural. Eu transito no medo, na insegurança social. Eu sou a violência que se multiplica nas sombras da impunidade. Eu sou a persuasão dos “comentaristas políticos” pagos para minar na mente popular, a esperança coletiva de todas as mentes humanas sob o controle de meus interesses particulares. E públicos.
— Eu faço parte das “famílias” que concentram a riqueza material de um país em poucas mãos. Eu trabalho incansavelmente a impossibilidade de ascensão social a todos os que não se venderem aos meus interesses, via corrupção. Ao mesmo tempo, eu sou também a legião dos desafortunados que não acredita no dia de hoje, porque não há nada no dia de hoje em que acreditar. Eu sou aquele que quer minar os interesses da sociedade vitimada por aqueles a quem consegui devorar totalmente. Eu odeio àqueles que se querem libertar de meu comando, comunicação e controle. Eu amo os 58 milhões de idiotas que, de alguma forma foram convencidos pelo conservadorismo maluco do capitão Brancaleone.
— Eu estou trabalhando arduamente para que, nas próximas eleições, o medo tenha a oportunidade de voltar com seus candidatos usuais, ordinários. E$ seus apoiadores fascistas: empresários, militares, retardados mentais de todos os tipos.
Ganhei coragem e olhei outra vez a visagem, interrogando: “Ainda não compreendo por que eu...” A Coisa me interrompeu para prosseguir o discurso autoritário:
— Você é escritor, meu caro, do tipo que não é atraído pelas loucademias de letras que eu, a “alma do mundo” represento. Eu sou a representação coletiva de um país que não se quer sério, como diria aquele general francês. Você precisa ser mais realista e compreender que, se escrevesse para essas gerações de coelhos que só pensam em se reproduzir e reproduzir, para consumir, consumir, consumir... Esta é a realidade do mundo, do Mercado. Acredite em mim. Eu sou Ele. O Mercado. Sem mim você não vai se criar. Aceite minha amizade sem mais delongas. Você precisa ganhar dinheiro com a qualidade de sua literatura. Basta fazer umas adapataçõeszinhas em seu estilo. Não queira ser mais realista do que a realidade.
Eu queria dizer alguma coisa em minha defesa. Mas a verbal idade fácil do egocentrismo do senhor Mercado me impedia de contracenar com sua fala impositiva:
— Não compreendo você. Escreva para mim, coisas que eu gosto, que são do meu feitio. Que fazem parte de minha “fenomenologia” popular. A consciência é uma atividade regida por atos perceptivos, imaginativos, especulativos. Que pode você contra a evidência de uma sociedade cujos atos perceptivos, imaginativos e especulativos pertencem à matriz emocional da paixão pelo futebol, pela música popular do pula-pula, pelo carnaval, pelas vítimas sociais dos sambistas vendedores de cervejas e de drogas outras? Você não se tocou de que esse é o país das chuteiras? É o meu país! A Coisa enfatizou. É o meu mundo.
Esse filho de uma tarada está querendo que eu vote nele nas próximas eleições. É isso. Perguntei: qual é o seu candidato à presidência nessas próximas eleições?
— Qualquer um que ganhar estará fazendo meu jogo. Terá uma performance de moralista de fim de semana. Será contrário, radicalmente contrário, à descriminalização das drogas. Será contrário, fundamentalista mente contrário, à melhoria dos padrões de educação. Exceto no discurso. Fará sempre um discurso voltado para o incremento da demagogia, do populismo. Inventará qualquer expediente para não aumentar efetivamente o salário dos professores. A inventividade deles criará palavras como “bônus”, para justificar a vida miserável dos docentes e seus salários de indigentes sociais.
— Eu necessito de unanimidade. Eu preciso de insanidade pessoal, social, universal. Você está querendo dividir o meu eleitorado. Por isso vim manter essa conversa amigável com você. Mude os paradigmas de sua literatura e o sucesso de seus livros estará garantido.
Pensei em minha condição financeira e econômica, e argumentei que, afinal, mais cedo ou mais tarde, “conseguirei uma fatia de vossa excelência”. Vossa Excelência, o Mercado, é vário. A mediocridade é contagiosa, sim, mas existem pessoas que estão despertando para uma sociedade menos arbitrária. Seu discurso sobre fenomenologia cultural é uma fraude. O Inconsciente Coletivo Nacional e o Inconsciente Coletivo Universal, começa a atuar em benefício do planeta, a começar pelos povos de seus países.
— Eu não preciso de motivações para a inteligência, porque não tenho nenhuma. Exceto aquela, suposta, que defende meus interesses globalizados. Não simpatizo com você... É tão mais fácil seguir o caminho da literatura para coelhos. Por que você não o segue? Eu sou a cultura que privilegia o mau-caratismo acima de tudo, que encoraja a desonestidade desde o pré-primário.
Por vezes a mente libera a intuição da essência, fenomenologias, no estado entre o sono e a vigília. Pessoas que se dedicam às mais diversas atividades de criação desejam entrar nessa condição de percepção privilegiada da realidade, onde a criação flui sem as barreiras às quais se impõe ao ego.
Esse reino duodimensional (do sonho e da realidade) manifestou-se diante de mim, através de uma visualização temerosa. Abri os olhos e a coisa caveirosa, de aparência descarnada, com uma epiderme muito fina, estava sobre um nicho que parecia um grande monitor de Tv, a poucos centímetros da parte inferior lateral, à direita de minha cama.
Observava-me numa posição de serpente descarnada, de aparência supostamente humana. A princípio parecia menor. Quando, com um movimento brusco, de defesa, fixei-me na borda da cama, a coluna empertigada, a Coisa começou a crescer em tamanho e também empertigou-se.
Rapidamente empunhei a maior das adagas próximas à Coisa, e, antes que a visagem esboçasse alguma reação, submergi nela a lâmina da fálica catana em cruz, que estava ao lado da lâmina menor que parecia um obelisco. A aparência repugnante da figura, aliada à invasão de minha privacidade, encorajou-me a empunhar o sabre próximo e introduzi-lo por sob a carne tênue, de músculos trançados, do lado esquerdo do corpo da Coisa.
A lâmina penetrou sob as costelas do demônio em direção ao ombro esquerdo. A movimentação toda aconteceu em alguns segundos. Vi a configuração da comprida lâmina sob a pele, como se a folha laminada da espada tivesse encontrado a bainha apropriada.
A anatomia mefistofélica acolheu, sem reação, a agressão, como se já estivesse programada a aceitá-la. Fiquei a segurar a empunhadura da arma branca, acreditando que, se a soltasse, a simbologia fálica, perderia a possibilidade da interatividade que se seguiu.
A aparência era horrível, ameaçadora, a atitude passiva encorajou-me à fala: “Com essa aparência maldita, somente podes provir do martírio do inferno. Que fazes aqui, Coisa medonha?”
— Eu sou Maya, represento a ilusão em todas as suas manifestações. A ilusão e o sofrimento, que vocês, humanos, chamam de realidade. Eu sou a espiritualidade fraca, pusilânime, da “alma do mundo”, do mundo real e do mundo que vocês, humanos, chamam de virtual.
—Goethe já teorizou sobre você visão medonha. Fala excomungado, você é a alma coletiva dos inquisidores que desejam queimar na fogueira da insanidade a esperança dos brasileiros? Do mundo? E a coisa respondeu, cheia de enfado:
— Eu sou quem sou. Sou a hipocrisia, a submissão, o carnaval das dores alegres, o mundo real, o mundo virtual do faz de conta. Sou a covardia, a patologia feral dos que desejam desestabilizar as gerações sem escolaridade. Eu sou a violência das grandes cidades fantasiada de suposta alegria nos shows da música popular. Eu sou os discursos cínicos e vazios dos políticos do jogo do bicho. Sou a política das ditaduras subliminares da cultura do faz de conta. Sou a corrupção que mina a esperança dos “sem esperança”. Eu sou os comentaristas políticos das mídias que abusam da farsa armada de notícias pelos interesses dos bicheiros de Brasília, que tramam contra os interesses mais elementares do eleitor brasileiro. Dos eleitores do mundo.
E a coisa medonha, de aparência repulsiva, os músculos, os grandes vasos, a cabeça, o tronco e os membros sob a pele transparente, mais parecendo um desenho de exposição da anatomia humana numa faculdade de medicina, na qual se estuda os tecidos e ligamentos nervosos. Os grupos de músculos, as artérias pulmonares, o tronco pulmonar, as cavas superior e inferior, o ventrículo esquerdo. O seio coronário, os quadrantes abdominais, as vísceras... Era como se a membrana que forma a superfície externa do corpo, a epiderme da Coisa, fosse transparente. A aparição sobrenatural começou a falar numa tonalidade ressentida, somo se me cobrando um comportamento de acordo com suas expectativas:
Eu represento a nostalgia do poder dos velhos coronéis da herança maldita dos políticos da ditadura. Da velhacaria nordestina dos latifúndios. Eu tenho um coração imenso, nostálgico, trago comigo saudades amazônicas da dominação feroz dos antigos senhores da Casa Grande Planalto. Quando a praça dos Três Poderes ainda não havia saído do Rio de Janeiro.
— Represento a “elite” desse país. Deste planeta. Não posso permitir que os políticos sejam influenciados por uma ideologia alheia à dominação milenar das classes populares. A Casa Grande é a Casa Grande, a Senzala é a Senzala. As almas provenientes dos navios negreiros ganharam as cidades do mundo. Seus ressentimentos nunca aplacarão a atuação sobre a cultura neste país no mundo globalizado pela mesma coisa consumista. O mundo sempre será meu. Sempre será assim.
Pelo visto a assombração havia lido Gilberto Freire.
— Eu sou fã incondicional da literatura do Paulo Coelho. Da literatura totalitária da globalização. Da disseminação da ingenuidade. Da falta de senso crítico. Eu admiro a maneira com que esse autor de livros para coelhos e coelhinhas, apropriou-se da mediocridade de uma geração, dos vazios psicológicos imensos da mente coletiva da juventude, de suas dúvidas e interrogações mais profundas e sinceras, para vender livros aos borbotões. Esse sim é um escritor pós-moderno. Toda a velharia das academias de letras prostrou-se a esse arremedo de “literatura”.
“Prazer em desconhecê-lo”, respondi. A coisa ameaçou virar a cabeça em minha direção, mas apenas os olhos mexeram-se dentro das órbitas, dirigindo-me o olhar descarnado, prosseguiu:
— Você é um escritor, precisa ser lido. Quanto mais leitores seus livros tiverem, mais você poderá faturar. Ganhar o meu respeito. Vem comigo, faça como o Paulo Coelho, que com seu oportunismo ficou íntimo de minhas necessidades. Ficou rico, muito rico mesmo. Eu sou ele usando a si mesmo em benefício próprio. Eu estou inserido felinamente em todos as classes sociais. Eu tenho os contatos que abrem as portas da percepção da dinheirama globalizada. Venha comigo, escreva de modo a agradar os meus gostos, a minha (suposta) sensibilidade.
Eu estava meio zonzo com a proximidade da visagem. Fiquei quieto, quem sabe ela poderia me ensinar algo sobre as dificuldades de ser aceito pelo Mercado. Pelas mentes ávidas em consumir baboseiras.
— Eu sou os editores querendo vender o peixe podre dos discursos literários contaminados pelo oportunismo e a superficialidade. Eu sou a banalidade com nomes diferentes em todos os lugares, fazendo-me passar por literatura. Eu pertenço a uma etnia que se ajuda a faturar em todas as partes do mundo. Eu sou agregado da sociedade ajustada às manhas neo-pós-modernas do neon, do faturamento global. Eu sou o filhinho privilegiado do sistema de castas que se estabeleceu nas sociedades pré-históricas atuais, dominadas pela hipocrisia, pela violência, pela narcoditadura, pelas mídias do jogo do bicho, pelas intenções discursivas vazias de qualquer mínimo conteúdo social pertinente às mudanças. Eu odeio mudanças. Eu odeio Ética. Eu sou radicalmente conservador.
E a “Coisa” continuou falando de um modo irritado e megalomaníaco. Contraditoriamente, parecia estar em pleno surto psicótico de autocomiseração. Perguntei-me: “Como um arquétipo da globalidade, tão cheio de poderes, vem dá espetáculo para a plateia de um escritor desempregado?”. A aparição com certeza ouviu meus pensamentos. E retrucou:
— Eu sou o espaço Tv visível do qual emerge a grande inconsistência nacional. A patologia do mal sou eu. Eu sou a sociedade cortesã dos interesses da Corte dos fazedores de guerra com sede na Casa Branca, nas centrais governamentais em todos os países deste planeta. Eu sou a “alma do mundo” de um mundo sem cidadania. A “alma do mundo” que confunde literatura com decadência social globalizada pela referência única do consumismo desvairado.
— “Você é horrível, reagi, procura o Pitangui para te fazer uma plástica”, falei como se motivado por uma força natural, sem pensar se ia agradar ou não. A efígie da danação fez que não ouviu e continuou:
— Eu sou os nós que impedem a sociedade de se desatar. Para mim não procede operação plástica. Não há beleza possível na venalidade espiritual coletiva sem limites. Eu sou a estética do mundo sem a mínima morália. O mundo da atualidade. O mundo das manadas em busca do consumo. Eu sou O Devorador. Eu substituí os ideais da juventude que ousa fazer alguma coisa para sair da “alma do mundo” da fraude, da insanidade, das carências tatibitates, dos ressentimentos milenares, da sobrevivência encabrestada pelas ideologias de um padrão perceptivo caduco.
— Eu sou a fluida energia social que piora a vida de todos, todos os dias, em nome da sobrevivência dos índices altos das Bolsas de supostos valores, das ameaças, real e subliminar, dos bolsões financeiros. Eu sou representante dos cartéis globalizados da informação, do petróleo, da poluição sonora, visual, auditiva. Sou eu quem fabrica as guerras para que minha indústria de armas possa proliferar pelos séculos e séculos de dominação pela violência.
— "“Euzinho sou apenas um, umzinho... Não se sinta carente de minha companhia, você já possui a "alma do mundo", quase que em sua totalidade. Você não precisa de mim.”" A Coisa logo retrucou:
— Você me provoca uma imensa solidão. Tenho medo que você cresça, se multiplique, e aí estarei ameaçado em minhas contas, em meus objetivos insaciáveis de cooptação globalizada. Sou supersticioso e penso em ganhar cada um dos filhos de meus filhos da nova geração, da outra geração, de todas as gerações... Eu sou a autoestima dos poderosos.
— Eu sou o suposto amor-próprio dos pequenos burgueses que só têm a seguir o exemplo deletério de submissão social a seus padrastos políticos. Eu sou o supremo covarde que centraliza o desenvolvimento social de um país, de vários países, em acordos comerciais favoráveis apenas a uma das partes. Eu sou o sócio que deseja outros sócios apenas para tiranizá-los. Eu sou a ave de rapina dos pântanos globalizados pela suposta educação, saúde, habitação, pela massa falida da mentalidade nacional nivelada pela programação deletéria das Tvs. Eu sou o simulacro oficial de uma educação que só existe em teoria.
A poderosa “Coisa” fanatizada pelo Ter, Ter, e Ter ainda mais, infinitamente mais, parecia um buraco negro querendo devorar tudo e todos, continuamente. Liberdade para a “Coisa” era a ausência de mudança. Qualquer possibilidade de mudança, esbarrava no muro do medo de mudar como pessoa, como profissional, como cidadão, como atitude social. De repente ouvi a “Coisa” dizer, interrompendo bruscamente meus pensamentos:
— Eu sou a fragmentação dos interesses sociais. Os interesses que não sejam exclusivamente meus. Eu sou a luta em prol do desaparecimento total dos valores éticos, da mata Amazônica, das tribos que ainda insistem em sobreviver aos cães genocidas que só querem empanturrar a própria barriga. Eu sou aquele que labuta nos “lobbys” para manter leis inadequadas e socialmente destrutivas, que garantem a impunidade dos criminosos nas lutas intestinas pelo poder político, pela prevalência da corrupção, da delinquência infanto-juvenil, dos fanatismos ideológicos. Eu sou a superprodução de armamentos, o aumento dos orçamentos militares. Eu sou o apego à possessividade patológica, ao ódio, à indiferença sobre a condição humana mais deletéria.
— Eu sou o investidor incansável na depressão PSI coletiva, no medo social, no sofrimento físico e moral das pessoas. Eu sou o estresse, as tensões, a fome de poder, a fome de foder, as carências, a poluição da terra, da água, do ar. Eu sou o responsável pelas mudanças climáticas, pelo efeito estufa, pelo “el niño”, pelo desflorestamento desvairado, pela extinção das espécies vegetais e animais. Eu sou o que investe incansavelmente no discurso demagógico da esterilização da esperança no ser humano. Eu sou a intervenção artificial na programação genética, as leis que garantem a impunidade dos poderosos e a destrutividade definitiva da paz social. Eu sou, em suma, a dominação sistêmica da sociedade globalizada.
A “Coisa” parou por instantes como se estivesse matutando argumentos para me convencer. Eu disse: “Sim, compreendo, a verdade é que todos parecem disputar famigeradamente você, senhor Mercado. Desculpe, não estou interessado nessas vantagens. Digo e repito: "“Você já comprou a “alma do mundo” em grande parte de sua totalidade. Não vou fazer-lhe falta.”"
A folha da espada, mostrava agora a pele adensada da monstruosidade. Estava toda manchada. Os vários níveis de sujeira sugeriam que o senhor Legião, também conhecido pela alcunha de vossa excelência, o senhor Mercado, estava vestido com uma espécie de macacão de pele viva. Nela se viam milhares de logotipos, marcas de produtos que apareciam e desapareciam, substituídos por outros, a princípio com alguma intensidade, na velocidade aproximada dos carros pilotados pelos Schumacher da Fórmula-1.
O magnetismo da simbologia fálica da lâmina tentando atrair-me para dentro do organismo vivo da “Coisa”. Seu coração mecânico parecia bater as horas de um tempo nem passado, nem presente, nem futuro, nem agora. De um tempo vazio, absorvido pelas atrações das mídias globalizadas. A “Coisa” era todo entretenimento.
À mostra a circulação do sangue venoso, arterial, como se todo o interior do corpo humano, desprotegida sua visualização interna pela epiderme e derme inexistentes, estivesse, na falta dessas, exposto, sem a proteção dos tecidos subcutâneos. A “Coisa” começava, talvez, a desistir de tentar me convencer das vantagens de ser um escritor lagomorfo, leporídeo, em outras palavras, da espécie coelho, da qual provêm todas as raças domésticas que a humanidade conhece.
A “Coisa” que desejava fanaticamente domesticar-me, exercer a colonização de meus sentidos, subvertendo-os aos interesses da globalização supremacista, estava sendo, agora, absorvida lentamente para dentro do grande leito de raios catódicos do monitor da Tv eletromagnética que a trouxe à tona... Um pesadelo do qual eu gostarei de despertar. Sua voz, agora não tão nítida, ainda se fazia ouvir, diminuindo, gradualmente, de intensidade. Cápside, eu estava a ficar livre desse imenso terror. Pior que os “homens de preto. Mais assombroso que os bordeis frente aos quarteis que ameaçaram a democracia no dia 8 de janeiro de 2023. Eu ainda podia ouvir os ecos da voz, agora mais débil:
— Eu sou o eterno vigilante que garante que a liberdade não seja algo mais que uma quimera de dicionário. Eu sou a vergonha de disseminar a consciência de mim mesmo, de quem eu sou. Eu sou as artimanhas paliativas de uma sociedade genocida. Eu sou a política que paga os comentaristas da mídia para que eles se tornem meros faladores sobre os atos da realidade diário dos demais escravos.
"De olhos escancaradamente fechados", fixei o lugar onde deveria estar a “Coisa” horrenda. Não sei se impressionado pelo inusitado do pesadelo, vi apenas um ponto de luz fechar-se à altura donde deveria estar o monitor fantasma de vídeo. O senhor Mercado desaparecera. Poderia ter sido sua presença uma mera alucinação? Uma ilusão sonora, um pesadelo ótico? Um fenômeno PSI neo-pós-moderno?
(P. S: VISANDO CONSEGUIR UM EFEITO PERCEPTIVO MAIS INTENSO NO LEITOR, ALGUNS PARÁGRAFOS DESTE CONTO FORAM REPETIDOS).