Pra que ele se pintou assim?
Sei lá, parecia estranho, não era um auto retrato normal, não do tipo que eu normalmente encontro em bazares pelo menos. O quadro era completamente em tons de azul, passando pelo espectro monocrômico inteiro, os olhos estavam em destaque, eram em azul claro, turquesa eu suponho, eram pequenos demais pro rosto, mas grandes demais pro quadro, se isso sequer faz sentido, um senhor de pelo menos 40 anos de óculos ou com um monóculo, a pintura esta danificada em alguns pontos do quadro. Barba clara, calvo com um semblante serio e quanto mais analiso seu rosto, mais suponho sobre ele, terno que se eu pudesse chutar, diria que é um cinza, bem portado e com um gravata clássica pintada com ondas e cabelos brancos, resto de cabelo pelo menos.
Tom matarucchia.
Era o nome atrás do quadro. Italiano talvez? Isso complica as coisas, estudos brasileiros são o meu foco na área de arte, apesar de ter estudado um pouco da Europa e África, mas as coisas estão mais interessantes, o que um quadro italiano estaria fazendo aqui? Ainda mais de uma pessoa que eu nunca ouvi falar? Eu achava q era a única amante de arte clássica daqui.
Ele era áspero, não parecia ser pintado no papel, o toque parecia mais de um pano velho duro de tinta, a moldura era reconhecível, madeira de pau brasil esculpida, ela é velha, muito velha, descobri pelo banimento do uso do pau brasil para usos como esse pela ameaça da extinção dela, uma pena, tanto pela perda da beleza que essa madeira trás, quanto pelo preço da madeira que cresceu mais e mais, ou seja, vou sair no mínimo pobre daqui.
Se pudesse descrever a compra desse quadro em breves palavras, o que posso fazer, descreveria como "interessante, intrigante e maçante”. Uma senhora de pelo menos 70 anos me atendeu, seus cabelos crespos grisalhos ressaltaram seu tom de bondade e calma, tão calma alias, que acabara por demonstrar uma imensa satisfação em atrasar a fila conversando com a sua vizinha sobre algo de sua neta se formar em medicina e sua namorada ter terminado com a mesma apos a descoberta de um pulo de cerca. Após doze minutos, que olhando de agora nem parecem tão impossíveis, mas acredite, foram. consegui chegar ao balcão, que só podia identificar como balcão pela placa sendo segurada por um prego numa caixa enorme. Apesar da enorme amigabilidade da senhora, tive que recusar seus incessantes convites em conhecer a sua neta numa tarde tão perto pra ela e tão longínqua pra mim, não sei o quão a audição dela é boa, mas era surpreendente ela achar que alguém sairia com sua neta apos ouvir os "pulos de cerca" da mesma pelos seus quase gritos e risadas.
Espanto, sua única reação ao ver o quadro foi espanto, não do mesmo que o meu de "essa peça é interessante, será que alguém que conheço saberia quem é esse matarucchia? “, talvez mais um "esse quadro não”, o que em primeira vista me pareceu um desgosto com a minha compra dele, me entregando um leve incômodo que me fez perguntar, um pouco mais grossamente do que foi intencionado "o por que dele estar a venda então?”, sua expressão mudou da agua pro vinho e seu espanto mudou pra "prefiro uma vacina na testa a ter ele pra frente da minha cama de noite com esses olhos brilhantes”, o que me garantiu esse quadro por uns baratos e facilmente substituíveis 20 reais, o que era catártico, pois além da vida de estudante não ser nada barata, poderia passar na volta pra casa no mercado e comprar minha comida congelada favorita com o dinheiro que sobrou, pães de alho.
Vivo em uma vizinhança japonesa, não exatamente japonesa, mas cheia de japoneses, o alugador da minha casa disse que refugiados da guerra nipo-americana de 97 foram jogados lá pouco tempo apos o primeiro bombardeio, o que me impressionava, tanto pelo descaso com eles que chegaram aqui sem ao menos um modo de viver, quanto pela resiliência dos mesmos. A arquitetura é agradável e completamente diferente de algo brasileiro, e espantava com quão pouco tempo transformaram aquele lugar de um espaçosos e relaxados cortiços cobertos por arquitetura romântica portu-brasileira em uma apertada, aconchegante e pacata vizinhança japonesa. sinto falta das ruas com crianças jogando bola no asfalto usando chinelo velhos com pregos na sola como gol, afinal, além de apertado, a velha guarda de senhores e senhoras daquele lugar usavam regras rígidas pra manter a ordem do lugar. Apesar de não terem um titulo oficial desses de filmes americanos de chefes da rua, o respeito por eles era nada menos que norma, mas podíamos transpassar seus olhos de águias de vez em quando, logo ao lado do mercado havia uma casa de festa, espaçosa comparada a rua, meio fora de lugar se me perguntar, mas as luzes ficam mesmerizantes a noite.
O mercado estava vazio, quase na verdade, não me surpreendo tanto, a maioria da vizinhança deve estar nos bazares e devem ficar neles ate o anoitecer, nada que que velhinhos gostem mais que coisas antigas e baratas, o que me faz sentir como uma alma velha por segundos enquanto abro o freezer pra alcançar meus pães de alho. O frio da embalagem me acorda desse transe e termino minha linha de pensamento no momento que penso que talvez ser uma alma velha seja algo bom, afinal, não tenho escolha se sou ou não, já que só hoje fui num bazar, comprei um quadro velho, fiquei feliz por poder comprar minha comida congelada favorita, tenho uma comida congelada favorita e vi uma casa de festas e um mercado e escolhi o mercado, aceito felizmente minha nova vida como uma senhora de 50 anos.
Sai do mercado pela tarde, a infeliz vida sem um celular se faz presente quando percebo que o tempo passa mais rápido e mais lento ao mesmo tempo, desde que derrubei meu antigo celular na privada numa serie de eventos que envolviam coreografias mal feitas e um celular mal posicionado percebi isso, momentos tediosos passam mais lentamente pela pequena caixinha de distrações que me entretinha por longos períodos não estar mais lá, ironicamente momentos mais interessantes passavam mais rápido, minha cabeça não pensava tanto neles, o que me fazia viver no momento, como se o extenso monologo comigo mesma fizesse o tempo esperar por ele terminar ate poder correr de novo, o que me fazia sentir poderosa por breves momentos ate perceber que tenho que chegar rápido em casa antes que o sol se vá de vez.
De volta as ruas, me lembro de uma favela que fui uma vez, na verdade morei lá, mas como mal saia de casa, minha mente pensa que só foi uma visita muito longa. As ruas daqui me lembravam de lá, as ruas estreitas, os súbitos sinais de musgo crescendo nas paredes, o cinza extenso pelas paredes, chãos e escadas. A única diferença era no modo em que tudo era feito, as ruas estreitas daqui eram cheias de detalhes, pedras artificialmente arredondadas formando muros, musgos cortados de um Jeito quase imperceptivelmente arrumados, os sinais de má-construção daqui eram escondidos por esses detalhes. A favela da santa maria era no mínimo distinta daqui, as ruas estreitas eram vazias, as pedras nos caminhos eram naturais ou lascas quebradas de tijolos, o musgo lá era um descanso do cinza silencioso que acompanharia todos onde quer que fosse, os sinais de má construção lá eram visíveis, me lembro de uma das ideias que me fizeram sentir saudade de lá, o quão verdadeiro era aquele lugar, essencialmente verdadeiro e genuíno, não tentavam esconder suas feridas com beleza numa vontade de compensar, afinal a negligencia do estado impedia. A felicidade era genuína, aproveitavam ela como se fosse a ultima vez que sorririam, o que os refugiados tinham de resiliência, os favelados tinham de gratidão pelas pequenas coisas que os deixam felizes. O meu maior choque de realidade foi notar o quanto as casas e os modos em que são feitas refletem seus moradores, meus vizinhos eram em essência normais e monótonos, era como um grande asilo de paz e perfeccionismo, todos escondendo-se dos outros enquanto não se mostrassem perfeitos. Já minha antiga vizinhança era tão real quanto seus lares eram, orgulhosos das suas origens e suas dificuldades enquanto aproveitavam seus momentos de euforia.
As vezes me pergunto no quanto de tempo eu fico parada observando esses pequenos detalhes, aumentando eles ate criar uma graça interna nos mesmos, sinto que o mundo se beneficiaria de um jeito de ouvir minha voz enquanto falo isso, sei que isso pode soar egocêntrico e um tanto inconveniente se visto na pratica, mas não considero isso apenas de minha parte, ate esse tal matarucchia devia ter algo importante para falar, algo que merecesse o tempo e o folego de alguém, talvez por isso tenha se pintado, um ato de si pra si mesmo com a esperança de se mostrar para o mundo e com orgulho dizer “este sou eu”.
Anos atrás nos tempos de criança tivemos um passeio a um museu de história da arte, nada demais para os outros alunos, mas minhas mãos tremulas e sorriso de orelha a orelha exalavam o entusiasmo que fugia do meu corpo em forma de incessantes explicações do por que aquilo seria tão incrível, apesar de estar no auge dos meus 12 anos e não ter nem perto a postura que tenho agora, já era claro o que eu desejava fazer, sabia que historia e arte eram tão difíceis de se estudar quanto era difícil de me ouvir falar sobre eles, mas entender a trajetória como a expressão humana evoluiu de pinturas rupestres para o cristo redentor me deixava energizada, como se, mesmo que não acreditasse nessa baboseira de que cada um de nos temos um proposito na vida, esse seria o meu, traçar o mapa que liga esses dois pontos na historia, passar por ilhas e pilhas de livros, imagens que contavam historias e cantigas que estabeleciam conexões entre o imaginário e o real para que enfim, criassem a arte. Não a toa eu acabei me perdendo entre as exposições, tanto brasileiras quanto estrangeiras, haviam pinturas que exalavam mistério.
“a bela e a fera” era um quadro assustador, irônico em nome, ate cômico dependendo do que te faz rir, era de um caçador e uma onça, caçador entregue pelo seus instrumentos de caça, uma espingarda prateada, um binoculo com uma lente quebrada e um pedaço de bife cru que se mantinha como isca para que uma onça se descuidasse pela pressa fácil, e uma onça entregue pela sua pelagem melaninada com sutis pintas camufladas pelo noturno, mas destacadas pela fogueira crepitante que clareava o quadro, orelhas focadas na direção do fogo em busca de algo não especificado e pressas afiadas taciturnas como flechas dos próprios deuses e divindades daquela mata. A interação dos dois era uma lambida da onça no rosto desacordado do caçador, um gosto de sua presa e que nem defesa teria, essa era a tal ironia, um beijo, uma única demonstração de afeto pela sua bela em que a fera não teria o mínimo de misericórdia.
Haviam outras exposições menos interessantes lá, mas um em especifico me chamara a atenção, “ Ήμουν εδώ, ο Λούκας ήταν εδώ “ escrito em uma tabua de pedra arrancada de uma parede, perceptível pela arestas destruídas, aquilo me chamou atenção pela desarmonia e incomodo que causava, tudo era tão claro naquele lugar, era uma festa de brasilidade, um festival histórico, mas aquela língua , aquela língua era tão estranha, ate linda e desviante do português , como nada que já tinha visto. Num impulso que nem notei que estava lá, me levei ate aquela pedaço de mármore, impulso esse que não poderia ser descrito como menos que confusão e desejo pelo desconhecido, um panfleto descritivo explicava sobre sua origem, era grego antigo, tempos depois descobri o que estava escrito nela, “eu estive aqui, Lucas esteve aqui”, aquilo não era arte, não parecia pelo menos, na época a minha obsessão por arte se tornou algo ainda mais além, aquilo me sugava todas as forcas em busca de uma resposta do por que aquilo estava lá.
Anos depois, já na época da faculdade, eu conversava com um professor, professor Luiz como eu o chamava, um senhorzinho baixo, careca e de poucas palavras, sua pele era escura e enrugada, destacando seu bigode cinza e confiável terno que parecia estar eternamente num tom de sépia.
- arte tem em sua essência é falha, somos complexos demais pra podermos ser postos em paginas de papel ou quadros – dizia ele enquanto bebia um gole de café açucarado.
- talvez você só não saiba desenhar e ache que é falha por isso – alfinetei seu ego, tanto pela minha maturidade questionável da época quanto por que já era um passa tempo fazer isso com Luiz, era uma relação paternal que se mudava na faculdade e se transformava de novo fora dela.
- de exemplos então, como uma simples arte pode expressar um sentimento tão complexo de um jeito tão simples? – disse ele depois de uma risada disfarçada.
- Fácil – eu menti, claro que eu sabia de um contra ponto para o seu argumento, estávamos apenas brincando e discutindo com opiniões fantasiosas, mas era como se eu tivesse esquecido tudo que eu sabia, precisava de algo e rápido, deixei meus instintos me levarem e falar ate ele cansar e desistir.
- “eu estive aqui, Lucas esteve aqui “, são apenas palavras, mas encapsulam o ímpeto do ser humano de não querer ser esquecido, por mais simples que seja, Lucas queria ser lembrado como pelo menos uma virgula na historia, e assim fez, esse desejo foi criado e encapsulado em uma só frase - ele conhecia o Lucas, como todas as pessoas que me deixavam falar por mais de 5 minutos, ele riu e concordou em parte. A discussão acabou pela falta de tempo do mesmo e uma professora que aguardava sua chegada a tempos e que eu sentia que tinha um pequeno ódio por mim. Nos despedimos e nunca mais falamos no assunto, me impressiono ate hoje com a minha habilidade de criar aquilo no calor do momento, como se fosse um pássaro preso a tanto tempo que precisava sair e quanto teve sua oportunidade, simplesmente voou, levando junto minha obsessão por Lucas por descobrir finalmente o por que daquilo ser arte, já que ela é simples expressão na sua essência, expressão essa que me faria entender do por todos terem algo importante a se dizer, a pura possibilidade da expressão já traz validade a mesma, pelo menos um olhar critico sobre ela.
Cheguei em casa, me perguntar quanto tempo vivo parada me fez entrar num inesperados turbilhão de memorias e sensações, deixo matarucchia no canto do meu sofá, velho companheiro que sempre me acolhe depois de uma noite de trabalho financiado por café, abaixo e sinto uma caricia na minha perna, um gato laranja se esgueirou pela fresta da janela e agora se sente livre em passar aqui de vez em quando, acaricio sua cabeça e a silenciosa casa se cobre com seu ronronar, minha mão relutantemente abandona ele e logo depois deito no sofá, “dia cansativo, mas produtivo “ penso pra mim mesma, numa ultima tentativa de pegar minha atenção, o alaranjado se esfrega na minha mão arrastada no chão, após a falha, ele sobe ao sofá e deita ao lado da minha cabeça, o que me faria sentir a sensação mais intima e feliz que eu pudera sentir na vida, se eu já não estivesse dormindo com os óculos quase quebrados sobre o peso do meu rosto.