SACERDOTES NO VAPOR LIBERDADE

Por algum tempo o Capitão Uriel, como exigia ser chamado, foi patrão num desses antigos barcos de madeira que transportavam o açúcar produzido na Mata Sul do Estado para o Cais de Santa Rita no Recife.

O quepe que ele usava, talvez até durante o banho, noutras épocas tinha sido uma peça de real beleza confeccionado com tecido branco e armação preta onde, na pala, haviam bordados com fios de ouro dois ramos de café e a âncora de metal sobre o medalhão no meio da testa.

Entretanto ele nunca tinha sido militar, muito menos pertencido à Marinha para merecer o título de Capitão.

Quando deixou o serviço embarcado, montou uma empresa para fazer os trabalhos na estiva do porto e transportar os marinheiros que precisassem embarcar ou desembarcar quando os navios estivessem estacionados no largo esperando a atracação.

Nessa época, os escravos das famílias que moravam nas cidades, trabalhavam como ambulantes ou em pontos fixos nas esquinas vendendo principalmente alimentos e também eram alugados para os serviços domésticos daqueles que ou não tinham dinheiro bastante para comprar ou não queriam assumir as responsabilidades da manutenção desses seres, cada dia mais caros devido às restrições do tráfico do exterior e entre as províncias.

Regularmente o Capitão Uriel colocava anúncios nos jornais solicitando aos Senhores que tivessem escravos sem vícios, mansos e de boa compleição física, que os alugassem para os trabalhos na sua empresa e que, pelos serviços, se pagava bem e fornecia a alimentação adequada.

O Dr. Tobias, advogado, era dono de pequeno engenho já de fogo morto em cujas terras os canaviais cresciam livres até a época da safra, quando o seu plantel de escravos procedia o corte e a entrega, em lombos de jumentos, na moenda do engenho seu vizinho.

Na maior parte do ano, o Dr. Tobias mandava vir para a casa do Recife no Pátio de Santa Cruz, oito desses escravos e alugava os machos ao seu compadre Capitão Uriel e as fêmeas a qualquer pessoa que precisasse dos serviços domésticos.

Ficavam no engenho apenas um casal para vigiar e cuidar das crianças e a matriarca da maioria do plantel, mãe Inã, que cuidava de tudo na casa grande.

Ananias e Gamaliel eram os gêmeos caçulas de mãe Inã.

Jovens com menos de vinte anos, pretos luzidios de altura mediana, dentes perfeitos que enfeitavam os rostos de linhas suaves e harmônicas, sempre sorridentes, fortes como touros e, apesar do odor acre das axilas, eram os favoritos do Capitão Uriel para os serviços nas catraias.

Por diversas vezes ele oferecera valor maior do que o do mercado para comprá-los, mas o Dr. Tobias era irredutível.

- Escravos dele não estavam à venda e ponto final.

Por essa época, a escravidão já havia sido abolida na província do Ceará e no Recife, vários abolicionistas haviam se organizado para sequestrar e mandar para lá os escravos que desejassem ser livres.

Eram chamados Clube do Cupim, porque agiam às escondidas, como os terríveis insetos cujos estragos só são percebidos quando já não se pode mais salvar livros ou a madeira atacada por eles.

Eis que no final de um dia em que nada de anormal acontecera, depois da maré alta e da partida do vapor Liberdade, que zarpara carregando açúcar com destino ao Ceará, duas catraias do Capitão Uriel foram vistas à deriva pelo mangue do Pina.

Entre as poucas barricas de açúcar que, “por falta de espaço” precisaram ficar no convés, duas delas estavam com a etiqueta –SACERDOTES- no manifesto da carga destinada ao Sr. Francisco José do Nascimento...

GLOSSÁRIO

Ananias e Gamaliel = sumos sacerdotes do sinédrio de Jerusalém.

Catraia = barco robusto com duas proas que navega à vela ou a remo por uma só pessoa.

Clube do Cupim = associação abolicionista recifense do bairro das Graças, criada em 1884

Fogo morto = dizia-se de engenho desativado

Francisco José do Nascimento = (1839/1914) abolicionista cearense conhecido como Chico da Matilde ou Dragão do Mar