Mais duro que pão dormido
As coisas começaram a melhorar. Agora ganhando salário mínimo, podia pensar em economizar, guardar algum dinheiro e ter futuramente meu próprio negócio. Trabalhei durante três anos sem nenhum problema, até que um dia me apareceu um gato. Um gato mesmo, desses quadrúpedes que miam e às vezes provocam como se fossem um bípede que fala. Meu serviço era pintar cones. Cada cone recebia uma cor, de acordo com o tipo de fiação que seria enrolado nele. O gato passou se esfregando em mim. Uma vez, outra, outra vez, e novamente o gato passou esfregando seu dorso peludo. Nada adiantava dizer, “sai gato...” Saía e tornava a voltar. Irritei-me com o bichano e quando voltou de novo, passei-lhe uma pincelada de tinta nas costas. Aproximou-se outra vez, tornei a passar o pincel. Cada vez que vinha, eu dava uma pincelada de cor diferente. Ficou pitado de azul, amarelo, verde e com todas as cores que dispunha para usar nos cones. Parecia um cara-pintada do impeachment de Collor de Melo. Mas como o caso de Collor não deu em pizza, do gato também não deu. O bicho amanheceu entrevado, mais duro que pão dormido. Os operários estavam em polvorosa! O chefe vai punir severamente o responsável pela malvadez contra o gato. Será mandado embora sem direito e ainda processado pelo órgão de proteção dos animais. Duas piedosas funcionárias fizeram uma limpeza no felino. Poderia ser a salvação do animal e do pintor de gatos...
Havia um funcionário de maus antecedentes que era o principal suspeito, mas negava veementemente. O assunto no refeitório era o gato pintado e o destino que aguardava o pintor. Então perguntei. Cadê o chefe da seção. Alguém respondeu. “Está no escritório assinando a suspensão do funcionário xis.”
Eu sei quem pintou o gato. Não foi o senhor xis. Vou falar com o chefe. Entrei no escritório, o homem realmente assinava alguns papéis.
- Com licença, doutor! Eu sei quem pintou o gato. Não é a pessoa que o senhor vai punir.
- Você sabe a responsabilidade que está assumindo?
- Não chefe, nem sabia que pintar gato era crime, mas o senhor não pode punir esse acusado. Não foi ele.
- O senhor sabe quem pintou o gato?
- Sei.
O homem com ar de quem estava preocupado me encaminhou ao chefe geral sem tomar meu depoimento.
- Boa-noite.
O chefe geral levantou a cabeça e respondeu serenamente. Sente-se.
Minha ficha já estava em suas mãos.
- O senhor é seu Francisco de Assis Lima?
- Sou, sim Senhor!
- O senhor sabe quem pintou o gato?
- Sei.
- O Senhor sabe a responsabilidade que está assumindo?
- Não Senhor, mas estou aqui para falar a verdade!
- Então pode falar, rapaz!
A verdade é esta. Quem pintou o gato fui eu. É certo que não pensei em mal nenhum, só quis afastar um gato que me importunava enquanto pintava os cones. Errei. O senhor pode decretar minha sentença.
- A ordem que tenho é para demitir por justa causa e encaminhar o processo à Justiça, para que tome as medidas cabíveis. Mas o senhor é um ótimo operário, fica até difícil acreditar que seja responsável por isso. Sua atitude em assumir a culpa, confirma ainda mais seu caráter. Vou fazer um relatório à direção da empresa amenizando a culpa. Você se fez merecedor de minha credibilidade. Eu o aconselho a voltar amanhã à noite e se seu cartão estiver na chapeira, marque o ponto e vá trabalhar.
Meu cartão estava no local de marcação do ponto. Marquei-o e fui assumir meu posto. Apesar de ter sido perdoado, aquela rigidez me incomodava muito e a vontade de procurar novo emprego tomou conta de mim. O dia amanheceu, completei meu horário e voltei pra casa me sentido desmoralizado por um gato.
SILVA, Francisco de Assis; LIMA,Adalberto. O Brasil nosso de cada dia.