RELÓGIO QUE ATRASA NÃO ADIANTA
Ricardo nasceu sob o estigma do atraso, é bem verdade; mas também não poderia ser muito diferente. Dizem os mais próximos, por exemplo, que já no ventre de sua mãe, dona Terezinha, ele não era lá muito pontual com a vida. A experiente gestante fez umas contas meio doidas e concluiu, não sob suspeita, que nasceria em Agosto. -É sim, Agosto; tenho certeza! Foi em Dezembro que Joaquim (seu marido, um prestanista viajante) apareceu de repente em casa! - disse ela. E de posse dessa informação tratou dos preparativos para a chegada do oitavo filho. Chamou a parteira com antecedência, preparou o enxoval, e... Errou feio! Nasceu em Novembro. Sendo assim, podemos tirar algumas conclusões (algumas até maledicentes): Ou dona Terezinha não sabia contar nos dedos os meses do ano, e errou em muito na previsão; Ou o Seu Joaquim fora traído, devido aos meses a fio sem aparecer em casa; Ou então, sua mãe estaria correta, e Ricardinho é um único ser humano conhecido que demorou dozes meses para vir ao mundo. Uma aberração! Não bastasse isso, os dentes de leite só apareceram aos quase dois anos. E os primeiros passos: ah, demorou mesmo. Foram dados aos três aninhos! E Ricardinho cresceu assim. Sempre atrasado em tudo. Na escola, sentava-se na última carteira da última fila, e também recebia a última nota em classificação decrescente. Que coisa, né? Mas hoje mudou. Está adulto. Quase adulto... Arrumou emprego! E pra variar, sai de casa todos os dias meio atrasado também. Diz-que arranjou um amiguinho, e que precisa tirá-lo do atraso em que vive... Seria possível? Pois é. Pagamos pra ver. Pagamento adiantado...
Ele saiu para o trabalho no horário de sempre. O dia estava frio, meio chuvoso, e o garoto Willians - seu amiguinho; um desses pivetes que vive às portas dos carros nos cruzamentos da metrópole - como todos os dias estava lá; naquele mesmo semáforo movimentado. Já impaciente, com fome, quase em jejum não fosse umas largas cheiradas na lata de cola escondida perto da guia. Acenava com a mão, aproximava-se dos carros, batia no vidro. E nada. O estômago revirava – por causa da fome e também da cola. Não se sabe direito qual a proporção entre essas duas coisas: - Tudo normal. Meu amigo está atrasado hoje. Como sempre. Tomara que não demore muito... - pensava Willians; em voz alta.
- Moço, me dá um trocado...
- Desculpa; "tô" sem moedas...
O outro nem abriu o vidro; com medo, arrancou com o carro importado. Poderia ser um assalto. As gangues fazem isso, utilizam-se de crianças para atrair as vítimas. Mas Willians estava com fome mesmo. Não era aliciado. E volta e meia ele olhava para o ponto do ônibus Expresso, ou para a esquina alí adiante, de onde quase todos os dias, seu amigo Ricardo aparecia carregando sua pasta de trabalho e mais um outro pacote na mão: um sanduíche, "X-egg", que comprava na padaria da vila onde morava, e trazia para o garoto. E Willians tinha uma dúvida esquisita em relação ao seu amigo: - Por que será que quando o Ricardo vem no ônibus da Brasil Express, ônibus de "bacana", não me traz nada? Mas quando vem nos "busão pau-veio" sempre trás a minha comida! Estranho isso. Não deveria ser o contrário?... O ponto em comum é que sempre está atrasado! Quer seja de "busão pau-véio" ou de Expresso de Luxo.
Ricardo fora menino de rua também. Já empinou quadrado com cortante, jogou bola com os moleques da vila, cheirou cola, fumou maconha, bateu carteira, mas agora era outro. Rapaz esforçado, quase inteligente, trabalhador. Fora acompanhado por uma dessas Ong’s com fins sociais e completara o ensino médio; depois fez curso de informática, idioma, etc. Agora pegou uma bolsa financiada para a universidade: - Nunca mais serei um atraso - dizia ele. Um outro amigo o indicou para uma vaga numa firma transnacional. Que beleza! Mas está atrasado pra reunião com o chefe. Faz parte! Coisas da vida moderna... Market Share! É o tema da reunião de hoje. O chefe vai ficar uma fera. Ele disse que era importante todos estarem presentes...
Enquanto isso o garoto Willians se virava no semáforo:
- Moço, me dá uma moeda... – a barriga roncando.
Em casa, Ricardo fizera alguns contatos pela internet, na intranet; onde vendera, comprara; e num segundo passou os dados à matriz - do outro lado do oceano!
Antes de pegar o ônibus indo para o trabalho, ele passou na padaria, pediu o "X-egg" do garoto, e pôs-se a esperar no balcão.
– Cheese virou X, murmurou Ricardo ao olhar no letreiro colado à parede.
- O que disse, senhor?... - perguntou o atendente.
- Não. Nada... - disse ele - Seja mais rápido! Se não vou perder o ônibus da vila e terei que pegar o Expresso. É bem mais caro, sabia? Ou eu compro o sanduíche, ou eu pego o Brazil Express. Os dois não dá. Falta-me tempo, sacou? - disse esfregando os dedos, em sinal de dinheiro. E voltou ao pensamento em voz alta.
- Tem até gente "parkeando" carro por aí...
Na chapa quente, onde o rapaz da padaria fritava o ovo e esquentava o queijo, subiu aquele cheiro agradável de comida fresquinha. Depois ele abriu o pão e foi colocando os demais recheios:
- É pra viagem?
- Sim. Como sempre...
Volta e meia Ricardo olhava no relógio. Preocupado com o horário. E terminado o serviço, o rapaz embrulhou o sanduíche e o entregou:
- Obrigado. Volte sempre, freguês.
- Pode deixar...
Ricardo colocou o embrulho dentro da pasta. Esperou mais alguns preciosos minutos e finalmente conseguiu tomar o ônibus, todo contente. Já estava imaginando a carinha do Willians. Moleque bom, esse! Só precisa de um empurrãozinho... Um dia ele chega lá!...
O ônibus partiu; andou alguns poucos quilômetros e parou. Ficou lá, estacionado. Nem pra frente e nem pra trás. A BR 116 estava parada. Droga! Ricardo fez contato com gente na Europa em dois minutinhos e não conseguia chegar à Avenida Faria Lima; aqui, relativamente tão perto.
- Trânsito louco. Tudo parado. Nada funciona... Isso é o que se pode chamar de pseudo-modernidade. Coisa pra virar piada de gringo mesmo. É a globalização do atraso! Globalidade Tupiniquim... Tudo aqui tem atraso. Até o coletivo é atrasado. – dizia ele, baixinho, consigo mesmo - Depois dizem que o atrasado sou eu...
Não havia nenhum carro quebrado ali na frente. Nenhum motivo aparente para tanta morosidade; mas, o coletivo estava parado. Imóvel. Lotado. O povo espremido. E não só o Ricardo estava atrasado, mas todos os demais passageiros também estavam. Até mesmo o imponente coletivo da Brazil Express, que normalmente já deveria estar chegando ao seu destino, mas não: estava ali, colado com o do Ricardo! obviamente que também estava atrasado! E Ricardo a todo instante olhava no relógio para ver as horas:
- Relógio que atrasa não adianta, disse o rapaz ao lado com ares de riso. Ricardo fingiu não ouvir a piadinha irônica. Comprara aquele relógio a pouco mais de duas semanas, numa barraca de camelô da cidade. Estava novinho. De marca estrangeira, falsificada... Mas estava novo. Brilhando. As pilhas zeradas.
- Atenção paulistanos! Neste exato momento a cidade está com um congestionamento record de 290Km. - dizia o locutor pelo rádio ligado na mão de outro passageiro. - Certamente milhões de pessoas chegarão atrasadas em seus rescpectivos locais de trabalho hoje. - Atrasado?! De novo! Mas que droga, cara! Pensava ele, já estressado. Ricardo planejava mostrar na reunião os contatos que fizera; as transações já encaminhadas pela rede. Mas não iria dar tempo...
- Que cheiro de comida aqui dentro, hein?! – disse um passageiro.
- Realmente. – completou o outro – A marmita de alguém deve estar muito boa... – e muitos riram. Era melhor manter o bom humor do que se desesperar e se irritar com aquela demora no trânsito.
Um automóvel parou no farol. Havia um casal lá dentro. Willians se aproximou:
- Moço, me dá uma moeda...
A mulher, apiedada, bateu na perna do marido para que abrisse o vidro. Eram turistas, negligenciando o manual de como comportar-se numa cidade violenta. Estavam procurando um endereço bem conhecido na cidade. Talvez um museu. Ela rapidamente revirou a bolsa tentando achar algum troco em moeda nacional. Nada. O semáforo quase abrindo. Então tirou da carteira uma nota de um dólar. Passou ao marido, que abriu o vidro e estendeu o braço para dar ao garoto. Willians viu a nota de um dólar; deduziu que eram estrangeiros.
- Tanks! – falou Willians. Na rua, aprendera arranhar alguns termos em inglês.
- What? – disse o turista, estranhando o agradecimento - Where is the Museum?... – perguntou apressado.
Nem deu tempo de terminar a pergunta, dizer o nome do museu. O sinal abriu. Os carros atrás buzinando. Não havia mais tempo.
- Vai sair da frente ou não vai?... Seu lerdo! – gritou alguém num carro logo atrás.
- I don’t know... – respondeu Willians ao turista; voltando rapidamente para a calçada - Droga!
O automóvel com o casal partiu. Desapareceu em meio aos milhares de carros que normalmente passam na avenida.
- Olá, tudo bem? – perguntou ao Ricardo uma das garotas que não lhe tirava os olhos.
Ricardo estava bem vestido; “nos panos”. De terno preto. Cabelo bem cortado, curtinho, todo espetadinho pra cima. Uma tribal no punho, que aparecia toda vez que ele passava a mão no cabelo com gel. - Tudo parado... As garotas no “busão” pagando um pau: - Gatinho, né! -Tem MSN?...
Ricardo gostou da investida. Nisso ele é bem adiantadinho...
- Tenho sim, "pera" um pouco...
Pegou o celular. Nervoso. O sapato novo estava lhe apertando o pé. Incomodava. Doía. Tentou ligar para o chefe para avisar que chegaria atrasado novamente. O celular do chefe estava desligado. Inferno! A “mina” pensou que ele já ia passar o número pra ela:
- Pode falar.
- Falar o quê?
- O número pra eu colocar na minha agenda...
- Ah, sim. – e falou-lhe o número.
A garota ficou contente. As outras só filmando a coragem da amiga. Muito “loca” essa mina. Ricardo a todo instante olhava no relógio. E de vez em quando escorregava os olhos no decote da moça. Mas o pensamento não saía do chefe, que sempre exclamava para toda a repartição ouvir: - Ricardo, você é o atraso em pessoa. Seu sobrenome deveria ser atraso! A-tra-so!!!
- Qual seu nome?
- Atraso.
- Como? perguntou a gorata, com estranheza.
- Ah, desculpa. Eu estava pensando noutra coisa. Meu nome é Ricardo. E o seu?
- Adriana. - e mais um tempinho depois: - Está a fim de ir num happy hour?
- Talvez... Aonde é?
- Perto da firma em que eu trabalho.
- Quando?
- Sexta.
- Já é!
Trocaram endereços, e-mails, orkut, e etc...
- Me liga.
- Firmeza.
A garota se despediu; mesmo no aperto do busão ela conseguiu voltar para junto das amigas. E ficaram conversando baixinho, cochichando. Contando o que rolou: - Já é! Eu não disse que colava nele!...
De repente começou a cair uma chuva. Fecharam as janelas.
- Trânsito louco. Clima louco. Cidade louca essa... – repetia o Ricardo mentalmente. - Enlouquece a gente também... Mas pelo menos estou no lucro. Consegui “mó” gatinha hoje...
O ônibus partiu. O motorista já enraivecido, estressado com tanta demora; pisou fundo...
O Ricardo impaciente com aquilo tudo. Do lado de fora, o clima frio. Do lado de dentro; quente. As janelas fechadas. O busão lotado. Maior bafo-de-moela. Neguinho respirando no cangote um do outro. E o motorista pisando fundo, na BR, sentido Pinheiros.
Um sujeito queria descer. Passou bruscamente com sua mochila nas costas, levando tudo a sua frente; machucando os demais passageiros.
– Mas que ignorância! Pede licença chefia!... – disse um dos passageiros que fora atingido em cheio pela mochila.
- Aê, tá me tirando brother?! Eu quero descer, "véio"!...
- Desça só, então. Vai levar todo mundo junto... "Qualé" que é mano?!
O ônibus correndo e a discussão se avolumando. Nisso, talvez por causa do choque térmico; lá fora frio e chuvoso, e dentro quente e abafado, duas janelas do ônibus estouraram de repente. Foi estilhaço de vidro pra todo canto! Fora o barulho do vidro quebrando. Assuntando os passageiros.
Ricardo pensou que os rapazes que estavam discutindo haviam puxado arma: - É tiro! Pipoco! Me lasquei...
E não pensou duas vezes. Jogou-se com tudo no assoalho do ônibus. E na queda, foi levando junto a si toda a multidão à lona. Efeito dominó. E a gritaria se instalou:
- Socorro! – gritou o povo – O que está acontecendo, gente?
Ricardo deitado no assoalho do ônibus; todo sujo de lama, melecado. Pensou rapidamente no que tinha feito. Puta que pariu!... A parte da frente do terno toda ensopada. O povo olhando pra ele, estendido no assoalho, morrendo de vergonha. Então resolveu fingir que estava passando mal. Ficou pior. O mico foi maior ainda. As minas que o paquerava correram pra perto dele. Uma tiazinha gritou assustada:
- É epilepsia, gente! Acudam!
Os caras o pegaram. Prenderam-lhe os braços para não ficar se debatendo. Enfiaram-lhe as mãos sujas em sua boca para separar as mandíbulas e puxar a língua.
- Se não puxar ele decepa. Segura, gente!
- Não. Não é isso... A língua enrola e ele morre asfixiado! – disse outra pessoa.
- Cuidado com seu dedo também, rapaz. Senão ele decepa junto com a língua... – disse alguém mais experiente.
- Chama a ambulância...
- Toca pro hospital, motorista!
- Será infarto?
- Alguém o conhece?... Tem família?...
- Outro dia eu vi um morrer assim...
- Misericórdia!...
- Morreu foi?
- Eita!
- Tão moço...
Ricardo quase tendo uma crise. Mas era de loucura. Que situação!... Por pouco não surtou de vergonha e estresse. As minas chorando. Ele tentando se mexer, explicar-se. E os caras o segurando cada vez mais forte. Um falatório danado. Burburinho de feira. Dezenas de olhos, rostos e mãos em sua volta. O calor, a lama, o frio, a chuva, bafo-de-moela, a roupa suja, o sapato apertado lhe dilacerando o pé, gente falando, o chefe gesticulando, os companheiros de trabalho, em fila indiana, riam: - "atrasildo", otário!... Os ponteiros de um relógio no pulso de alguém que o segurava, começaram a crescer, crescer... - e do tamanho de uma lança medieval lhe cravaram o peito, que arfava. O coração disparado. A pasta preta jogada ao longe com seus papéis e o sanduíche do Willians. O mundo rodando. O pé esquerdo lhe doendo dentro do sapato. Sua mãe disse algo que ele não entendeu: - Mãe?!.. O dono da casa em que morava, gritou-lhe cobrando o aluguel: - Dois meses de atraso!... Rua, vagabundo! Um rato enorme, um gabiru, roía a camisa nova no guarda-roupa velho. Ele se quer havia usado. - Não esqueça do meu remédio da pressão. Disse-lhe sua mãe. E um gato preto pulou em cima da telha de zinco, fazendo um barulho enorme. Tudo isso passando em sua mente em fração de segundos. Enfim, ele não agüentou mais. Num impulso com toda sua força, empurrou todo mundo com as pernas, com os braços; e surtou, explodiu, gritou!
- Puta que pariu! Me solta, pooooorraaaaa! Me solta, caraaalhooo!...
Os caras o soltaram. No solavanco tomado, desequilibraram-se caindo sobre as pessoas em volta:
- "Tá" doido “mer-mão”?! Que porra é essa?...
O ônibus novamente parou na BR. Aquela confusão. Ricardo levantou. Mudo. De cara fechada. Todo amarrotado. Pegou a pasta preta, desceu: cuspindo, cuspindo sem parar. Com nojo. Se quer olhou pra trás. Os passageiros com as cabeças para fora das janelas, olhavam-no tentando entender. - Pro inferno! A chuva caindo mais forte. Em sua boca ainda havia um pouco de terra e lama do assoalho. Adriana queria o acompanhar:
– Não! Vá embora, meu! Me deixe em paz...
E Ricardo seguiu a pé seu caminho de volta pra casa. Pela BR. Mancando com o sapato a lhe doer. Pensava em tirar aquele troço dos infernos. Mas o caminho estava muito encharcado. Muita lama pelo canteiro da rodovia. Ficaria pior. - Pior? Poderia ainda haver coisa pior?... Ele cuspia no chão o tempo todo. Enfurecido. Envergonhado. O sanduíche, X-egg, todo amassado dentro da pasta preta em sua mão. Ricardo perecia o próprio sanduíche. Acabado. Judiado. Dilacerado. - "Tô" só o pó da rabiola!... Dizia ele enquanto andava - "Tá loco, hein!" Ninguém merece essa urucubaca dos infernos!...
– Tio, me dá um trocado. Eu "tô" com fome... – continuava o garoto Willians pedindo no semáforo - Cadê o moço que não chega?...
F I M