Zíron
Seus trabalhos remunerados os sustentavam e não eram tão degradantes.
Mila Cox e Zími sabiam que a distância que mantinham do mainstream era de se esperar. A repercussão que conquistaram resistindo, e às vezes se arrastando no underground durante os últimos anos era satisfatória.
Eles gostavam de acreditar que a dor existe no que há entre aquilo que as pessoas são, e aquilo que elas idealizam ser. Como eles não tinham ego inflado, estava tudo bem. Haviam também motivos extra-musicais para essa postura.
Essa parceria musical tinha pouco mais de um ano quando foi decretada a pandemia. Tinham feito poucos shows até então. Puderam compor e lançar músicas na internet.
Estavam agora num ponto em que poderiam dizer que enfrentaram condições gerais hostis desde o princípio.
Percebiam que em certos momentos, estavam influenciando positivamente vidas juvenis e dando um choque em mentes reacionárias.
O anonimato que Mila Cox e Zími ainda tinham podia ser uma arma em suas mãos. Artistas obscuros eram mais legais para eles.
O som que faziam era impalatável para as massas.
Como já mencionado antes, seus trabalhos remunerados os sustentavam e havia um certo tempo livre e de isolamento para criar, e assunto não faltava.
Manter distância da soberba e presunção de grande parte da cena musical mundial era não só um lema para suas vidas pessoais, como também uma temática para suas músicas.
“Putsss, tô fudido!”- foi o que Zími pensou ao se lembrar que estava na véspera da gravação de um podcast. Ele adorava podcasts, mas não sabia e não se perguntava quando participaria de um.
Mila Cox também nunca havia aparecido em nenhum podcast, mas tentava acalmá-lo.
“Acho que quando você começar a falar, ficará mais fácil. Apenas tome cuidado e não grave chapado.”- ela disse.
“Eu nunca me tornaria fascista, nem racista e nem machista, mesmo chapado. Mas entrarei careta e falarei somente o necessário.”- ele respondeu.
Zími disse se tratar de um tipo de nervosismo que bateu na véspera, Diferente de quando ele fazia shows, e o nervosismo surgia apenas quando o momento da apresentação estava próximo.
Apenas pensava que quando fosse o momento, falaria de seu projeto musical.
Ele até então concentrava sua exposição fazendo shows e lançando músicas na internet, e com eventual produção de mídias físicas, em vinil e cd.
Analisava a repercussão e algumas consequências positivas e negativas de ampliar a sua exposição para além de um produto artístico, aprendendo com o que foi feito pelos que vieram antes.
Aproveitava do que havia de bom em ser um sujeito desconhecido que apresentava na internet as suas músicas.
A semana em que Kevin’Geordie’ Walker e Shane MacGowan morreram quase simultaneamente representou a queda de dois pilares culturais para Mila Cox e Zími.
Então começou o mês de Dezembro, e os esboços que tinham para novas músicas naqueles dias eram sobre a insatisfação inerente à existência.
Iriam então adaptá-las, para que também servissem como homenagem aos músicos falecidos. Então decidiram que em breve deveriam lançar mais um single, para ficar pronto até o fim do ano.
Os singles de antigamente tinham duas músicas, uma para cada lado do compacto de sete polegadas. Hoje em dia são uma música só, mas eles fariam à moda antiga, para lançarem também em vinil.
Dias antes, Zími sentia algo parecido com uma crise de meia idade, algo que ele nunca pensou que fosse enfrentar, e nem mesmo tinha certeza de que fosse esse o caso.
Desde o tempo em que era um moleque que vivia com os pais, ele não se sentia tão estável na vida, e ironicamente, isso lhe causava estranheza.
A vida continuava sendo a tentativa diária de equilíbrio entre escolhas e consequências, mas agora tinha uma residência fixa, com as contas pagas em dia, tinha comida em casa.
Havia enfim uma estrutura geral digna para um cara de quarenta e seis anos que precisava achar equilíbrio entre ação e sossego.
Às vezes chegava a ser estranho para ele, que agora não vivia mais tão amargurado com os altos e baixos de sua vida. O lar é onde uma pessoa cessa as tentativas de fuga .
Dizia que o casamento duplica as obrigações de uma pessoa, e reduz à metade os seus direitos. Sempre esteve decidido a continuar solteiro, pois também temia que sua vida artística sofreria, caso ele se casasse, seja lá com quem fosse.
Enquanto refletia sobre como deixou de desejar tão intensamente viver apenas para ver o fim da humanidade (onde o final definitivo nivelaria de uma vez por todas os indivíduos de qualquer época apenas como pertencentes a uma espécie extinta por autodestruição), pegava embalo no entusiasmo juvenil de Mila Cox para criar e continuar contestando valores estabelecidos que ele desprezava.
Ao mesmo tempo pensava no grau de seu egoísmo em relação às gerações que o sucederiam, e que pouco ou nada tinham a ver com a situação do planeta e nem com as vergonhas sucessivas causadas pelos poucos humanos que realmente ditam regras, seja em termos de degradação ambiental irreversível, seja nas relações também tão degradadas já no século vinte e um adentro.
O que sempre houve foi uma força individual e coletiva pela consolidação de uma existência frágil e finita, que pode ser perpetuada pela glória ou pela vergonha
Muitas vezes sem que os protagonistas ainda estejam vivos para aproveitara glória ou se redimirem da vergonha.
Zími dizia ser como um cachorro velho, que demora para se acostumar a novos lugares e realidades, e em seu caso isso parecia valer até para a prosperidade material. Talvez por receio de perdê-las por algum motivo, e aí sim ter uma nova mudança desfavorável.
Sua parceira musical Mila Cox era vinte e seis anos mais jovem, e isso agora lhe motivava a fazer música até morrer, embora não tivesse a pretensão de ser eternizado por isso. Pensava que depois de morto isso não faria mais diferença.
Tratava-se de aproveitar sua existência em vida, seja lá qual fosse o seu sentido.
Geralmente um artista não está preparado para uma ascensão meteórica.
A queda vertiginosa que normalmente a sucede é um golpe ainda pior.
Mila Cox e Zími nunca viveriam a primeira situação, pois já trabalham há algum tempo para deixarem música relevante para o público que a assimilar.
Cox costumava dizer que a música deles era um manifesto de esquizofrenia e promiscuidade musical. Dificilmente atingiria um público imenso, mas pensava em colher frutos mesmo com um público não tão grande.
Ela nunca considerou outra possibilidade que não fosse questionar tudo, e usar a música como recurso. Sabia que as massas viviam um cotidiano que não fazia referência a nada superior, e explorava essa temática.
E o resultado a ser colhido seria poder fazer turnês mais estruturadas, para lugares mais distantes, para além de cidades do sudeste e sul do Brasil.
Aprendera certas lições ao longo da vida, e há muito havia entendido que não há glamour para ninguém, quem quer que fosse.
A certeza da morte vindoura, cedo ou tarde, ainda o entristecia um pouco quando pensava no assunto. Seu receio era de sofrer doente antes de morrer.
Mas estar fazendo rock com quase cinquenta anos, depois de uma pausa que ele pensava ser definitiva, ao lado de uma jovem, que dias antes se desesperava com matérias antigas sobre queimas de arquivo da cultura brasileira em incêndios.
Cox também adotou pouco tempo antes a palavra ‘estoicismo’ e o mencionava quando Zími estava azedo.
Ela era pressionada pela família para que fizesse uma faculdade, e alegava ser impossível fazer mais pesquisas do que já fazia, tendo terminado o ensino médio e mergulhado na ideia de ter um emprego para sustentar a vida na música.
Para Mila Cox, Zími tinha apenas eventualmente o humor de um cara de meia idade, mas não tinha a aparência e nem o comportamento de alguém que tivesse aos trinta e cinco.
Havia entre eles uma simbiose artística que a permitia seguir sem deslumbramentos ou ilusões sobre a vida no meio musical.
Já para Zími, essa simbiose artística permitia continuar com ânimo para fazer música, lançando os trabalhos na internet e eventualmente em mídias físicas, e viajando numa Kombi para cidades do interior para fazer shows.
A Kombi era do vizinho e amigo uruguaio Silvano, que na mesma faixa etária de Zími, começou tardiamente uma carreira musical, encorajado pela dupla, e passaram a trabalhar apoiando-se mutuamente.
A parceria com Silvano, que agora era uma banda de um homem só, e misturava influências de punk rock, blues e rockabilly, mudou a vida dos três.
Mila Cox e Zími formavam os Crop Circles, duo que misturava punk rock, post punk e psicodelia. Cox era vocalista, tocava contrabaixo e sintetizadores, e Zími também era vocalista e tocava bateria de pé, usando um kit minimalista.
Conheceram-se quando Mila Cox e Zími se mudaram para o mesmo prédio que ele vivia há onze anos. Moravam no mesmo andar, o que facilitou a aproximação entre eles.
Silvano falava português sem sotaque, pois vivia no Brasil desde pequeno.
Seua shows eram agendados nas mesmas datas que os Crop Circles tocaram desde então.
Quando soube que Zími estava nervoso por causa da gravação de um podcast, Silvano falou:
"Deveríamos fazer um podcast semanal! Nem sei porque não pensei nisso antes!"
Zími respondeu: "Publicidade é importante, mas excessos extra-musicais podem levar tudo à ruína. Aumentar a fama sem ganhar dinheiro é o pesadelo que eu não quero ter. O contrário disso seria formidável, e se encaixa melhor naquilo que eu idealizo. Ter mais dinheiro e andar anônimo na rua seria incrível. Ou pelo menos conseguir que o aumento da popularidade seja proporcional ao do dinheiro."
Silvano: "Eu sei que muitas vezes se dá muito mais valor ao anonimato depois que ele é perdido. Mas no nosso caso, por mais bem sucedida que fosse a estratégia promocional, no caso o podcast, isso não ia nos impedir de continuar frequentado a mesma padaria que frequentamos. Eu comecei a carreira musical agora, mas não ter sido chamado pra uma entrevista sequer, chega a me incomodar"
Zími: "Eu odeio essa parte. A Mila é quem responde na maioria das vezes, e ela adora. Eu não me importaria se fosse sempre assim. Algumas vezes as pessoas, geralmente estudantes, querem falar especificamente comigo. No lugar do orgulho e do entusiasmo, fica uma certa ansiedade."
Silvano: "Você não deveria se preocupar com o surgimento de haters."
Zími: "Eu não me preocupo com o surgimento deles. Eles já existem, mas são tão ignorantes que nem mesmo sabem que eu existo. Assim que tomarem conhecimento, gritarão na internet daquela forma que você não vê ninguém gritar na rua. A essa altura, a nossa popularidade será maior. E essas pessoas são tristes, ignorantes, pretensos algozes da liberdade. Eu não aguento nem pensar sobre eles. Há sempre um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude."
Então Mila Cox disse que estava pensando em chamar um saxofonista para concluir algumas músicas.
Zími perguntou:" É pra imitar o X ray Spex? "
Mila Cox: "Também, um pouco. Mas há muitas outras influências que apontam essa possibilidade. Não seria nunca um membro oficial da banda. É para intervenções pontuais em uma música. Sei que um saxofone aleatório pode descambar pra cafonice, mas não é o nosso caso. O Zappa fazia bom uso quando precisava porque ele também satirizava. Era isso que cortava o risco de ser ridículo."
E ela saiu do apartamento. Pela janela, minutos depois Zími e Silvano a viram entrando na padaria do outro lado da rua, provavelmente para beber.
Ela só bebia quando tinha bloqueio criativo. Eles bebiam muito e ela os chamava de alcoólatras.
Entraram na padaria e lá estava Mila Cox conversando com Zíron, que provavelmente havia combinado de se encontrar com ela.
Zíron tocava sax e já estava avisado que não seria membro oficial dos Crop Circles, apenas poderia fazer participações eventuais em gravações.