VEGETAL

Lá fora o mundo parece existir. Dá para escutar. Buzinas, às vezes sirenes, outras

vezes apenas… qualquer coisa que emita algum som. O próprio vento, por exemplo.

Nunca havia percebido isso, sabe. O som do vento. Minha cabeça sempre esteve

tão ocupada. Com a esposa. Com o trabalho. Com qualquer particularidade inútil.

Então, num dia qualquer, um automóvel decide dividir o mesmo espaço que o seu e

tudo escurece. Você acorda e vê apenas o teto, as paredes e pessoas de branco

com pranchetas nas mãos. E o bip-bip daquele aparelho do meu lado esquerdo da

cama. Em dado momento uma dessas pessoas de branco afirma que eu sou um

milagre. Um milagre! Eu, que já livrei o rabo de dúzias de estelionatários, golpistas e

até mesmo de um pastor acusado de enfiar os dedos cristãos em uma menina de

treze anos. Um milagre… que nem sequer acredita que exista um Deus. Este

“milagre” ficou sabendo, através de uma outra pessoa de branco, que seus

batimentos cardíacos enfraquecem a cada dia. Que talvez avisar sua esposa e

familiares sobre um possível desligamento dos aparelhos seja necessário. Outra

pessoa de branco concordou. Uma terceira perguntou se eu era doador de órgãos.

Uma delas disse que iria verificar. E tudo isso acontecendo ali, em um quarto de

hospital. Não faço a menor ideia de quando é dia ou noite. Pelos barulhos, posso

apenas supor. Isso porque há tempo que não abro os olhos. Desde quando o bip-bip

aumentou e uma correria generalizada aconteceu. Atualmente quase não ouço

nada. Nem o vento nem as buzinas. Por vezes tenho a impressão de ouvir passos

ao redor da minha cama. Podem ser as pessoas de branco. Ou simplesmente a

morte vindo me buscar.

Cotidiano Sombrio
Enviado por Cotidiano Sombrio em 08/12/2023
Código do texto: T7949854
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.