VEGETAL
Lá fora o mundo parece existir. Dá para escutar. Buzinas, às vezes sirenes, outras
vezes apenas… qualquer coisa que emita algum som. O próprio vento, por exemplo.
Nunca havia percebido isso, sabe. O som do vento. Minha cabeça sempre esteve
tão ocupada. Com a esposa. Com o trabalho. Com qualquer particularidade inútil.
Então, num dia qualquer, um automóvel decide dividir o mesmo espaço que o seu e
tudo escurece. Você acorda e vê apenas o teto, as paredes e pessoas de branco
com pranchetas nas mãos. E o bip-bip daquele aparelho do meu lado esquerdo da
cama. Em dado momento uma dessas pessoas de branco afirma que eu sou um
milagre. Um milagre! Eu, que já livrei o rabo de dúzias de estelionatários, golpistas e
até mesmo de um pastor acusado de enfiar os dedos cristãos em uma menina de
treze anos. Um milagre… que nem sequer acredita que exista um Deus. Este
“milagre” ficou sabendo, através de uma outra pessoa de branco, que seus
batimentos cardíacos enfraquecem a cada dia. Que talvez avisar sua esposa e
familiares sobre um possível desligamento dos aparelhos seja necessário. Outra
pessoa de branco concordou. Uma terceira perguntou se eu era doador de órgãos.
Uma delas disse que iria verificar. E tudo isso acontecendo ali, em um quarto de
hospital. Não faço a menor ideia de quando é dia ou noite. Pelos barulhos, posso
apenas supor. Isso porque há tempo que não abro os olhos. Desde quando o bip-bip
aumentou e uma correria generalizada aconteceu. Atualmente quase não ouço
nada. Nem o vento nem as buzinas. Por vezes tenho a impressão de ouvir passos
ao redor da minha cama. Podem ser as pessoas de branco. Ou simplesmente a
morte vindo me buscar.