O Menino do Vestido Vermelho
A mãe bate na porta do banheiro:
— Gabriel, anda logo, vai! Já está todo mundo lá embaixo te esperando.
O pai, mais ao fundo, grita mais forte:
— Filho, obedeça a sua mãe!
— Tô saindo, mãe.
— Suas roupas novas estão aqui em cima da sua cama, escolhe uma e desce.
— Tá bom!
O pai reforça:
— Não demora, hein!
Enquanto caminhavam em direção à festa de Gabriel, que completava 12 anos e acontecia na parte inferior da casa, Helena e Carlos, os pais, trocaram olhares inquietos. Referindo-se ao filho, confessaram:
—Ele tem algo dentro dele, algo que não compreendemos totalmente - murmurou Helena, com uma expressão preocupada. — Espero que não seja nada sério.
Carlos assentiu, sua expressão tensa revelava uma preocupação semelhante.
—Precisamos ser firmes com ele, Helena. Não podemos permitir que ele se desvie do caminho certo. Nossa fé e tradições são o alicerce de nossa família. É o que eu falo, muito tempo na internet tem confundido as crianças. Até a gente que é adulto vez ou outra temos certo relativismo moral, quem dirá essa geração sensível que está vindo aí.
O quarto de Gabriel era forçadamente decorado com brinquedos destinados a meninos, com paredes azuis adornadas com pôsteres de super-heróis e carrinhos de corrida. Os bonecos robustos e masculinos que preenchiam suas prateleiras pareciam estar fora de lugar naquele espaço. No entanto, em um canto escondido do quarto, havia um pequeno boneco do Homem-Aranha que ele mesmo tratou de vestir com um lindo vestido de noiva branco, com um longo véu feito com uma meia velha.
Gabriel, um menino franzino, não se via em nada. Não tinha a menor noção de quem era, do que queria. Na escola, preferia estar com as meninas, achava os meninos ridículos e suas brincadeiras selvagens e idiotas. Pensava isso de quase todos os meninos, menos de Breno, um colega da sua turma por quem cultivava uma paixãozinha lúdica. Se imaginava em um balanço vestido de noiva, nos mesmos moldes do seu boneco do Homem-Aranha, com Breno o empurrando feliz. No começo, tentava repelir esse pensamento, depois começou a aprimorá-lo, até que se casaram e foram morar em uma loja de ursinhos de pelúcia personalizados no shopping da sua cidade.
Voltando sua atenção às roupas novas, sentiu uma tristeza habitual. Não se identificava com nada daquilo. Experimentou uma a uma, mas, apesar de novas, as roupas pareciam velhas: shorts e camiseta estampada, sempre a mesma coisa. Insistiu, colocando tudo que tinha no seu guarda-roupa, fazendo combinações diferentes. Mas nada adiantava. Era tudo tão igual e tão desconexo da sua alma.
Na parte debaixo, todos amigos e familiares esperavam pelo aniversariante. Enquanto Gabriel se preparava em seu quarto, lá embaixo, na festa de aniversário, a atmosfera estava repleta de música sertaneja e conversas animadas entre os convidados. Carlos e Claudio, pai e tio de Gabriel, estavam sentados em um canto, cercados por amigos próximos, compartilhando histórias, comportamento e percepções do cotidiano sob um olhar absolutamente obsoleto.
— É o que eu falo, não é ser agressivo, mas um corretivo a gente tem que dar na mulher da gente. Se não, elas veem, cagam na nossa cabeça e está tudo certo? Papai mesmo já corrigiu mamãe inúmeras vezes, e estão juntos até hoje, 50 anos de uma vida feliz. - disse Claudio erguendo a garrafa de cerveja em um gesto de confiança masculina. Seu corpo robusto e bruto era ressaltado por uma camisa xadrez desgastada e jeans desbotados, refletindo sua personalidade rústica e tradicional.
Carlos assentiu, mantendo uma postura séria e imponente. Seu olhar severo e suas roupas formais transmitiam uma aura de autoridade e rigidez.
— É preciso impor limites desde cedo. Caso contrário, elas se perdem em um mar de confusões. – respondeu Carlos, ecoando as crenças patriarcais que regiam sua própria vida e a criação de seus filhos.
Enquanto isso, Helena e sua mãe Luiza conversavam em voz baixa em outro canto da festa. Helena, com um olhar preocupado, compartilhou suas apreensões com Luiza, sua mãe.
— Eu sempre senti que o Gabriel era um tanto delicado demais, um pouco diferente dos outros meninos. - disse Helena, franzindo a testa com preocupação. Sua postura rígida e seu vestido conservador refletiam sua visão estrita sobre as normas de gênero e comportamento.
Luiza, com sua presença afetuosa e tranquila, tentou acalmar as preocupações da filha.
— Ele é apenas sensível, querida. Cada criança é única à sua maneira.
Helena balançou a cabeça, uma expressão de apreensão ainda estampada em seu rosto.
— A senhora sabe como o mundo pode ser cruel com pessoas assim. Não quero que ele sofra por ser diferente.
Luiza colocou delicadamente a mão no ombro da sua filha, transmitindo uma sensação de tranquilidade e compaixão.
— Ele só está descobrindo quem é, querida. Com o tempo, tenho certeza de que se tornará alguém que você e todos nós iremos nos orgulhar.
A conversa entre Helena e Luiza refletia as tensões entre a preocupação materna e a pressão das normas sociais sobre a identidade de gênero. Cada uma delas lidava com as expectativas e os desafios de criar um filho em um mundo que muitas vezes se recusa a aceitar a diversidade e a individualidade.
Yasmim, a irmã mais velha de Gabriel, de 19 anos, conversava com seu namorado, Arthur.
— Eu sei que o Gabriel é gay, mesmo que ele ainda não compreenda. - disse Yasmim, com um olhar carinhoso para Arthur. Sua voz transmitia compreensão e aceitação, contrastando com a atmosfera tensa da festa.
— Nossos pais vão pirar quando descobrirem. Eles não estão preparados para lidar com isso.
A interação entre todos daquela festa revelava as complexidades das relações familiares e das normas sociais, cada um lidando com expectativas e pressões que muitas vezes se chocavam com a verdadeira identidade de Gabriel. A festa continuava em meio a risos e conversas animadas, enquanto a vida de Gabriel pendia em uma dualidade entre ser o que é e ser o que querem que sejamos.
Decidido a abandonar sua festa por não se identificar com nenhuma roupa para uma ocasião tão especial quanto ao seu aniversário de 12 anos, caminhando melancólico pelo corredor da casa, ao passar pelo quarto da sua irmã Yasmim, viu de relance, em cima da cama, um vestido lindo, vermelho e curto.
Ficou encantado, tudo em volta do vestido perdeu a cor. Só a vermelhidão daquela peça encantadora para ele refletia em seus olhos. Foi se aproximando, o tecido frio e macio acariciaram os seus dedos. Com um olhar de profundo encantamento, levantou o vestido, o admirou, depois o apertou fortemente contra o próprio peito. Mais que depressa tratou de levá-lo ao seu quarto e vestir.
Assim como quando chorou pela primeira vez, quando falou as primeiras palavras, quando deu os primeiros passos, quando nasceu o primeiro dentinho, Gabriel se reconheceu, ali se identificou frente ao espelho vestindo o vestido vermelho de sua irmã. Sentiu uma emoção enorme, o vestido era maior do que ele, ainda assim pareceu-lhe perfeito, todas as aflições da sua incompreensão consigo mesmo foram asfixiadas pelo vestido vermelho. Mais que depressa voltou ao quarto de Yasmim, procurou por um sapato para usar com o vestido, depois correu até o banheiro da irmã para passar batom, vermelho é claro, e o que mais estivesse à disposição. Embora nunca tivesse usado nem vestido, nem sapato, nem maquiagem, se sentia extremamente confortável e desenvolto com todo aquele universo que nem a ciência, nem as religiões, nem a compreensão humana são capazes de apontar um efeito causa.
Assim que se viu pronto, fez uma reflexão muito mais madura do que a própria idade.
— É por isso que eu nunca me achei lindo, é porque na verdade eu sou linda!
Na mais pura inocência, tratou de se apressar e ir para sua festa, se viu, se reconheceu e queria compartilhar isso com todos o mais breve possível. Tentou correr com os saltos, mas ainda estava aprendendo a usá-los.
A cada passo em direção à festa, a ansiedade de Gabriel crescia, misturada com uma sensação de libertação que ele nunca experimentara antes. Enquanto descia as escadas, ele podia sentir o olhar surpreso e crítico de seus pais e convidados. A música alta que ecoava na sala de estar parecia desaparecer, substituída por um silêncio incômodo e uma tensão palpável.
Ao se postar parado, todos os convidados, entre amigos e familiares, estavam escandalizados ao ver um suposto menino usando com desenvoltura um vestido vermelho, saltos e batom.
Toda a repulsa, toda a maledicência, todo o preconceito e toda a interpretação errada de depravação refletiram de volta do olhar de todos para o olhar de Gabriel, que só conseguiu pensar:
“Acho que errei ao colocar um vestido vermelho. Vou pedir para Yasmim me emprestar um vestido preto.”