O Vestido - um outro olhar

Volto àquela casa para buscar meu cachecol. O clima esfriou e preciso de um acessório mais sofisticado para uma reunião com a diretoria. Logo na entrada do condomínio sinto um arrepio. Era isso mesmo o que eu queria? Será que pensei bem? Já não tenho tempo para divagações. Avanço pelo jardim até a portaria e pego o elevador. Não estava feliz aqui. Por isso pedi para que ele não estivesse. Não tenho tempo para conversas. Entro e o gato vem roçar-me as pernas. Vou levar o Serafim também. Lembro quando o trouxe da rua e ouvi uma ladainha dele por alguns meses por causa disso. A mesma ladainha em relação às vasilhas e panelas velhas que eu ainda guardava. Busco no cesto de roupas o último vestido que deixei. O vestido não está lá. Aliás, a área de serviço está cuidadosamente limpa, outra mania dele. Nada fora do lugar. Tudo muito organizado, perfeito. Isso ainda me irrita. Mas quem vai lavar e passar minha roupa? Vou para o quarto, Serafim me acompanha. Abro a porta e a cama está um pecado, impecável. Isso lá é hora de trocadilhos nostálgicos? Termino de afastar a porta e meus pensamentos. Fico em silêncio, quase não respiro. Não quero acordar aquele homem em mim, não, não quero lembrar que foi o cachecol que usei no dia da minha cirurgia e seus olhos atentos me acompanharam até a entrada do centro cirúrgico quando o deixei em suas mãos. As mesmas mãos que me sustentaram no banheiro quando fiquei enjoada após minha primeira quimioterapia. Que prepararam minhas refeições nos dias mais difíceis do tratamento. Você recebeu meus pais na pandemia e cedeu a eles o escritório e foi trabalhar home office na sala. Sinto um nó na garganta. Não. Ele não me deixou só, mas havia um fosso entre nós. Cavado por tantas queixas, tantas horas de solidão, tantas vezes ausente, mesmo ali ao meu lado, tanta dificuldade para ouvir meu ponto de vista. Quantas vezes me senti ignorada, nem um obrigada por tentar decorar a casa com meu toque feminino. Tantos silêncios, mágoas guardadas, palavras não ditas. Havia um imenso vazio e a casa agora espelha esses anos. No armário estava apenas o cachecol, um chapéu e aquele vestido vermelho, passado. Foi bom e foi o meu passado. Troco de roupa. Ponho o vestido, o chapéu e o cachecol. Olho no espelho e gosto do que vejo. Retoco o batom. Seguro o gato no colo, acaricio sua cabeça e saio...acho que vou ser feliz!