Maria Alice...

As últimas luzes sendo apagadas. Detrás da persiana suja um par de olhos castanhos, mas que estranho? Parece que tem alguém olhando? Os bracinhos finos, o rostinho sujo e as roupinhas também. O vestidinho manchado de vermelho, e os cabelinhos ausentes de xampu.

Maria Alice olha ao redor. Ali não tem ninguém. No quarto ao lado não tem gente dormindo, nem o papai e nem a mamãe; o irmãozinho, coitado, não conseguiu nascer. Maria Alice se deita no único pedaço de colchão. Com os olhinhos miúdos de sono olha para o céu, cruza os dedinhos e pede proteção ao Nosso Senhor.

Acorda no dia seguinte esfregando os olhinhos remelentos com as costas pequenas das mãos. Não tem geladeira para pegar um pouco de leite, para encher a xícara sem asas; no armário sem portas tem ainda três bolachas, é o seu café da manhã.

Mastiga as bolachas com raiva. Aperta a derradeira contra o peito magrelo, parece querer guardar para o jantar caso não consiga algo nas andanças de seu triste dia.

Maria Alice se abaixa e de joelhos no chão se estica, o braço parece não alcançar o que ela está querendo pegar. A boca mordendo a língua, o suor escorrendo pelo rosto, um gritinho agoniado e finalmente ela consegue. Uma caixa de balas de goma; cada uma custa um real, e realmente é triste se deparar com isso.

Vai ser não atrás de não. Fora as humilhações nossas de cada dia, mas ela não perde as esperanças. Na metade do dia nem meia dúzia vendida e no final dele, só dez. Maria Alice volta para o que ela chama de casa.

O chão sujo, as paredes sem reboco, na residência simples, onde quase não existem móveis, Maria Alice senta-se e de cabeça enfiada entre os joelhos ela chora; era mais uma batalha perdida em mais um dia interminável de guerra.

No dia seguinte as mesmas balas, e o mesmo vestidinho sujo, talvez o único. Entre carros e motoristas mal-educados ela oferece; nem o tamanho de seu corpo e seu rosto de criança são capazes de amolecer um coração. Maria Alice baixa a cabeça e segurando a caixa de balas de baixo do bracinho ela caminha na direção de casa. Ela passa por restaurantes lotados, vê um menino da mesma idade dela com os pais sentados em uma lanchonete lambuzando os dedos gordinhos e manchando a camiseta nova de catchup.

Como ela gostaria de comer um hamburguer, lambuzar os dedos e a roupa. Comprar roupas novas, ter uma casa com piscina e ser feliz.

Maria Alice, doze anos de idade, corpo menor que a idade, cabelos crespos e olhos castanhos. Entra mais uma vez em casa, coloca a caixa de balas em cima da mesa, descalça os chinelos e os joga num canto qualquer. No armário sem portas não tem nada para comer, pois a última bolacha que ainda havia ela comera na noite anterior; dormiria com a barriguinha roncando, com os olhos cheios de lágrimas e despertaria no dia seguinte ainda esperançosa, ainda sonhadora.

Manhã chuvosa, céu cinzento. Maria Alice desperta com o barulho da chuva, anda até a janela e pelas frestas observa o movimento das ruas; não são nem sete horas da manhã e ela precisa sair para vender suas balinhas.

A chuva não sessa. Maria Alice pega as balas e sai para a rua. Hoje ela não vai se preocupar com nada, pois ela sabe que Deus sempre a acompanhará e irá guiar os seus passos por onde quer que ela caminhe. Fim de dia todas as balas vendidas. Com a caixa vazia debaixo dos braços, Maria Alice anda pela calçada esburacada, o sorriso no rosto; após muitos dias de lágrimas nos olhos um fio de esperança.

Os anos se passaram. Maria Alice voltou a estudar, atualmente ela está concluindo o curso de psicologia. A menina que sofreu quase a vida inteira com seus traumas e seus medos, hoje ajuda as pessoas também a superá-los.

Uma sala grande com duas poltronas, uma de frente para outra. Uma estante cheia de livros, em cima da estante a caixa vazia de balas de goma, pendurado na parede o diploma, bonito, orgulho dela; na porta do lado de fora o nome dela escrito em letras bem grandes e douradas: DRA Maria Alice dos Santos, psicóloga... Fim...

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 21/11/2023
Código do texto: T7936925
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