ERA UMA VEZ...

ERA UMA VEZ...

Na única escola primária da cidadezinha o professor estava estupefato, o aluno mais atrevido da classe, já na 4ª série -- pronto para o "Admissão", depois Artigo 99, adiante "Cursinho" -- ousara fazer um conto que era pura provocação, um desfio a paciência do mestre. Com a folha de caderno nas mãos, olhava discretamente por sobre ela para todos os alunos, especialmente o Rogério e fingia ler o conto, ele que já o fazia 3 ou 4 vezes na tarde anterior:

A BRIGA

"O pessoau em tornu dos dois amigo arregalô os olho quando um dêlis enfiou a "peixeira" na barriga do adiversáriu. Todus, junto com feridu, fizeram "Ah"!

-- "ÉÉÉ assim que insinu patife que mi dá calóti" !

-- "IIIh, vai dá merda"... cochicha u povu vendu u ferido tirá da cintura, atráis das costa, otra faca, novinha em folha. O sujeitu, distraídu no seu discursu e segurando o rosto do caloteiro co'as duas mão, nem percebeu u movimentu. Enfiô a lâmina até u cabo, enquantu u povu fazia "OH" e um gaiatu na pratéia comentava:

UUUHH... essa doeu até ni mim" !

Os cabra caíram junto, um pra cada ladu, "mortinhus da sirva". Morau da istória: "uma "facada" de 20 mirréis não é motivu pra facadas" !

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O professor findou a breve leitura e vislumbrou o aluno malcriado nos fundos da sala, rabiscando algo no caderno.

-- "De quem é o conto "A BRIGA" ?!

Rogério levou um susto, ficou em dúvida se levantava a mão ou permanecia "oculto" dos óculos de grau do Epaminondas, o severíssimo professor de Português... também de História e Geografia pois, naqueles tempos, os mestres em 3 ou 4 matérias, com 1 livro só para cada uma, durante 4 anos.

-- "Aluno Rogério, venha até minha mesa" !

O mesmo tremeu, aquela frase gelada tinha o jeito de Juízo Final. Alguns alunos fizeram discreto "OH" com olhos arregalados e um ou outro sussurrou "Ah" ou "Ih, coitado" ! Aproximou-se bambeando, zonzo, as pernas inseguras...

-- "Você acha que isso é um CONTO"?!, rugiu com severidade, as vidraças vibraram e a sala inteira se amedrontou.

-- "Esse é o meu melhor conto, professor" !

Eram os anos 60, ninguém retrucava a adulto nenhum, nem ousava encará-lo... ficava de cabeça baixa, as mãos para trás, "amarradas", a vontade de urinar se avolumando. Porém Rogério era de outra têmpera... deu risota de "piedade" ! A irritação de Epaminondas cresceu feito mar encapelado:

-- "Nunca soube que escrevias ! Posso saber quantos contos já fez na Vida" ?!

-- "Esse é u primêro, por issu é u melhor... até agora" !

O sorriso do molecote crescera como massa de pão, sorria também com os olhos, o supremo escárnio. Para Epaminondas era mesmo o Dia do Juízo Final, seu rosto tornara-se azul escuro, estava próximo de um enfarte. Berrou:

-- "Hora do recreio, todos pra fora... menos você, espertinho" !

-- "Teu conto é ruim, uma porcaria, mas antes de te dar uma punição por tua esperteza, tens a chance de escrever -- na próxima meia-hora -- algo um pouco melhor" !

-- "A escolha é tua... é isso ou 1 semana sem recreio" !

Saiu batendo a porta e "fumegando" pelas orelhas, numa raiva mortal da carreira, da matéria, dos alunos, até da cidade. Meia hora passa rápido, principalmente para quem está no recreio... meia hora "voou" para Rogério, mas ele "redigiu" 8 ou 10 linhas, o pavor de ficar a semana inteira de castigo fez o cérebro planar por meio Ocidente, à cata de inspiração. Reiniciada a aula, o aluno apresentou tremendo sua "redação". Epaminondas ajustou os óculos de grau e preparou-se para asneiras !

"ERA UMA VEIZ.... UM PROFESSÔ" !

Naquela cidadi só tinha 1 Escola i a Escola só tinha umProfessô, qui insinava di tudu. Era ÚNICU, mais era u melhor, nunca si precisô di otro ! Todu mundu na cidadi aprendeu com eli ! O mestri sabia di tudu, só não sabia fazê CONTUS... sabia Taboada, Geografia, História, tudu di Portugueis, só não iscrevia CONTU. Us alunu não ficaram sabendu si eli sábi iscrevê CONTU" ! (Rogério)

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A sala não viu 2 ou 3 furtivas lágrimas embaçarem o vidro dos óculos, mas Rogério foi testemunha disso. A um sinal do mestre retornou à carteira. Era mesmo Dia do Juízo Final e Epaminondas estava em julgamento. Com voz rouca, saindo do fundo do peito magoado, tentou gritar:

-- "Crianças, estão liberadas, acabou a aula, podem ir" !

Elas custaram a crer mas, crendo, "voaram" em algazarra de passarinhos, colibris em busca de flores. Epaminondas continuou "pregado a cadeira", passadas 2 ou 3 horas. Chegou em casa depois das 4, 16 horas, a esposa e a filhinha de 6 anos preocupadas. Não almoçara e dispensou o jantar, estava "sem fome"... foi direto pro gabinete, sua saleta, onde corrigia os deveres dos alunos e lia e escrevia.

-- "Então o pirralho acha que não sei escrever um conto ! Vou lhe mostrar quem é Epaminondas" !, gritou para as paredes.

-- "Aquele fedelho petulante não perde por esperar... vou lhe provar que faço 1 conto só, o único e o MELHOR" !, reprisando sem perceber os argumentos do menino.

Relacionou meia dúzia de temas e os foi descartando: 1) enredo muito comum; 2) tema por demais piegas; 3) personagens já abordados por inúmeros autores; 4) temas clássicos, todos conheciam... falar de campo, de trens lotados, amores perdidos, guerras diversas, desgraças, riqueza e pobreza era "chover no molhado" !

A noite avançou, fez-se madrugada e Epaminondas não rabiscou mais do que 3 ou 4 orações, períodos, frases soltas, esparsas. Justo ele, um perito em Gramática, Semântica, Filosofia, tendo lido centenas de obras dos mais variados assuntos... justo ele não conseguia produzir um reles conto. Lá se foi a Noite com malas e bagagens ! Indormido, ele tomou café, olhos roxos, parecendo um "zombie". A esposa acendeu vela pra Santa Rita de Cássia !

O professor entrou calado na sala de aula, não recriminou a baderna geral e nem sequer pediu silêncio. Não sorriu para aluno algum, não cumprimentou nem os mais diletos, meninas principalmente, sempre mais atentas e estudiosas que os garotos. Chamou o Rogério à mesa. Silêncio absoluto da sala inteira, o moleque fôra o responsável pela mudança radical de Epaminondas:

-- "Rogério, você tinha razão, seu primeiro conto é o melhor, dei-lhe 75... PARABÉNS" !

-- "Mais ônti u sinhô disse qui era muitu rúim" !

-- "Ontem é ontem, hoje é hoje e o Amanhã a Deus pertence... agora, vá sentar" !

-- "I u otru ?! Qual é a nota" ?!

-- "Não tem nota, não é conto... foi VINGANÇA sua ! Quando você crescer entenderá meu comentário" !

E dirigindo-se para todos, pediu silêncio:

-- "Crianças, por favor, vamos começar a aula" !

Rogério saiu da Escola no final daquele ano, virou ajudante de caminhão, adiante motorista de um deles. Presenciou muitas estórias, porém a imagem do professor sisudo jamais saiu de seu coração... assim como a dúvida se ele realmente saberia ESCREVER 1 CONTO !

"NATO" AZEVEDO (em 14/out. 2023, 15hs)

OBS: hesitei muito antes de PUBLICAR este conto... alguém poderia "interpretar" como menosprezo AOS PROFESSORES, o que jamais foi minha intenção.