Fernando Gaivota
Fernando sempre teve este nome. Gaivota foi acrescentado: não saía do mar.
Quando as águas da Guanabara eram claras e cristalinas, lá pelos idos dos anos 50, ele não passava um dia sem cumprir seu ritual, fosse verão ou inverno, dia ensolarado ou chuvoso. Nadava a praia em toda sua extensão, que tem aproximadamente mil metros. Terminado o percurso, o garoto corria na areia de molhada do mar. Exigia grande esforço físico; tinha encerrado o seu primeiro exercício.
Bom aluno, não deixava de estudar, após breve sono depois do almoço. Não era preciso muito esforço; aprendera que nada como prestar bastante atenção nas aulas para assimilar com facilidade a matéria dada.
Este procedimento mostra sagacidade. O aluno não precisa ficar horas estudando a matéria dada em sala de aula. Se o professor é bom, ou mesmo razoável, o conhecimento fica cristalizado na hora. Era este o seu método, ensinado por pai e mãe, que haviam exercido o magistério.
Terminado o seu estudo, fazia uma série de exercícios físicos rigorosos, que sempre terminavam por um especialmente difícil. É a subida numa corda, pendurada em árvore, usando apenas a força dos braços, pernas formando um ângulo de noventa graus com o corpo. A corda tinha dez metros.
Apesar de tanto exercício, Gaivota era magro, mas extremante musculoso.
Não tinha nada dos rapazes de hoje, que viram brutamontes com o uso de aparelhos que usam halteres. Ficam com os corpos fortes e não praticam esporte algum que exija força, salvo a musculação mesma.
Gaivota não fazia parte deste tipo que surgiu há poucos anos. Nos fins de semana, aproveitava o seu tempo velejando quase o dia inteiro, acompanhado de um amigo. Quem não conhece o esporte da vela, acha prosaico, romântico e belo os barcos à vela deslizarem pelo mar, movidos pela ação do vento e sendo capazes de andar contra o mesmo, em ziguezagues. Isto é possível porque os veleiros possuem uma peça chamada bolina, nos barcos pequenos, e quilha, nos oceânicos. Nada mais é do que uma lâmina que fica mergulhada n’água e impede que o veleiro tenha movimento lateral. A bolina impede este movimento, impelindo-o para frente, desde que faça um grau suficiente com a direção do vento. Um barco à vela é considerado bom se consegue navegar contra o vento num ângulo de trinta graus.
Fernando tinha amplo domínio no pequeno Snipe, uma classe de veleiros que talvez seja a mais conhecida no planeta, tamanho é o número destes barcos pelo mundo afora. Comporta dois tripulantes, nas disputas. Fora das regatas, pode mesmo transportar cinco tripulantes que não sejam muito pesados.
Este tipo de veleiro não deve percorrer águas desabrigadas; não foi construído para o mar aberto, o mar sem fim, a grande massa d’água que ocupa três quartas partes da Terra.
Este pormenor, no entanto, nunca impediu Gaivota e seu amigo apelidado Carnaval, pela sua extrema alegria e comicidade, de velejarem fora da linha imaginária que delimita a pequena entrada da baía da Guanabara: o Pão de Açúcar, pelo lado do Rio de Janeiro, e a histórica Fortaleza de Santa Cruz, pelo lado de Niterói. Gaivota e Carnaval muitas e muitas vezes velejam até as praias oceânicas do Rio ou de Niterói.
Velejar é um esporte que exige muita força e excelente preparo físico, mas as compensações são quase indescritíveis. Sente-se o vento acariciando sua pele, existe o desafio de chegar ao destino e voltar sem problemas. A refeição quase sempre é sanduíche, e uma maçã é sempre bem-vinda. Por razão inexplicável, salvo para dias frios, nunca falta uma bebida alcoólica, geralmente o conhaque. Nos dias quentes, a cerveja é obrigatória. Marinheiros gostam de beber, mas não ficam embriagados. Caso isso ocorra, o perigo de um acidente é muito grande. Uma laje pode destruir completamente o barco, em caso de colisão.
- Então, Fernando, você se decidiu mesmo a entrar para Escola Naval.
- Não vejo outra profissão para mim, pai. Eu nasci para o mar.
- Todos nós vemos isso. Mas a vida militar não é fácil, e você sempre foi muito livre. Acredita que vai suportar viver sob ordens?
- Pai, a questão não é essa. Que vou fazer, longe do mar? Sei obedecer e saberei mandar, não se iluda!
- Nunca eu me iludi com você, Gaivota – o pai usava carinhosamente o apelido de Fernando.
- Então não há razões para temores, eu não quero deixar você e a mãe preocupados. E não vejo preocupação nenhuma, sendo oficial da Marinha.
- Se está preparado para isto, não vou ser eu que vou ficar contra sua decisão. Vou ficar orgulhoso quando você receber sua espada de oficial.
- Calmo aí, pai. Nem entrei para a Escola ainda...
- E você duvida que um lugar lá não é seu?
- Não sou míope, tenho todos os dentes tratados, passo nos exames físicos com facilidade. E as provas intelectuais estão todas ao meu alcance. Tenho um resumo das anteriores. Não seria reprovado em nenhuma!
Foi exatamente o que aconteceu, dois anos depois. Fernando passou com excelentes notas e os exames físicos revelaram que seria um excelente oficial. Até que certo dia, um navegador famoso, reuniu um grupo de velejadores experimentados, para disputar uma “Buenos Aires - Rio”, regata tradicional no calendário dos corredores.
Fernando foi chamado. Seria o timoneiro principal.
Num veleiro de 45 pés, cerca de 13,5 metros, rumaram para Buenos Aires.
A partir da Ponta de Juatinga, situada no extremo sul da baia de Angra dos Reis, o mar toma outro aspecto. Normalmente tranqüilo, até este ponto ele se torna imprevisível, principalmente quando atinge a costa do Paraná.
Fernando era o timoneiro no quarto da meia-noite. Chovia e ventava bastante. Por questão de manobra importante, sempre um tripulante fica no convés do barco. Hugo, o companheiro de Fernando na noite tempestuosa, foi fazer um café quente, que seria tomado com uma dose de conhaque.
Quando voltou ao convés, as velas batiam, não estavam mareadas – termo usado pelos velejadores para dizer que apanhavam vento pleno.
Não se via ninguém na roda de leme.
Até hoje, o corpo não foi encontrado. Dizem – os marinheiros contam muitas histórias – que Fernando se transformou numa bela gaivota...