As longas noites de Flavinha
Eram 22h30 de Sábado e a Flavinha estava sentada solitariamente à mesa de jantar. De certo modo, ela estava voltando a se acostumar com a sua própria companhia, em silêncio.
Até que vê a luz da varanda se ascender com o sensor de movimento, e escuta um abrir brusco da porta. Pelo peso da abertura, ela já deduziu quem seria.
Era Vera, sua mãe.
"Já jantou? Eu estava conversando com o seu avô lá fora. Nossa! Estou muito cansada, e está tão quente hoje! Amanhã tenho prova e preciso ir ao mercado, você sabia que hoje foi a missa de sétimo dia do seu padrinho? Aliás, não fique sem jantar, tem comida pronta na geladeira é só aquecer e jantar..."
"Boa noite, tudo bem?" Respondeu Flavinha suspirando de cansaço.
Mas por quê você se sente tão cansada Flavinha? Não descansou o dia todo?
Ah... É que por alguma razão a Flavinha se sente cansada, exausta, quando está perto de Vera. É a sua mãe, ela a ama e se preocupa com ela, porém não suporta os segundos na sua presença. Tem tanto trauma, tanto sufoco dentro do coração da menina que já não consegue desvencilhar o peso da presença de Vera, mesmo que Vera tenha boas inteções com ela. No fim das contas, Flavinha morre a cada segundo que compartilha na presença de sua família.
Vera finalmente se sentou para comer, depois de oferecer quatro vezes o jantar à Flavinha e ela, já irritada, responder de forma seca que não irá jantar, nem responder novamente à mesma pergunta.
Os minutos estavam se passando tranquilamente. A conversa começou a fluir e até deram algumas leves risadas por alguns momentos.
Flavinha fez uma pausa.
"Tem mais de sete dias que meu padrinho faleceu. Hoje não teve missa de sétimo dia coisa nenhuma." Disse pensativa...
"Ah, missa de um mês. Isso mesmo, faz um mês que ele morreu". Respondeu Vera.
Flavinha torceu o nariz. Não gosta de histórias mal contadas.
Mas então prosseguiu...
"Meu primo Gustavo está em casa?"
"Não, ele saiu com os coleguinhas"
"Mãe, que coleguinhas? Ele já é um homem adulto de vinte e poucos anos ou mais..."
"Para mim é criança, tem atitudes de criança"
"Alguém nessa família se porta como adulto, por acaso?"
Flavinha retrucou com um amargor na garganta. Repensou. Poderia ter deixado passar e não ter respondido tão taxativamente. Mas ela tem um defeito terrível de ser sincera até demais. E sente em seu coração um desespero absurdo de fazer as pessoas de sua família olharem um pouco mais para si mesmas e repensar as próprias atitudes. Principalmente Vera.
Vera então continuou...
"Ah Flavinha, eu sou adulta, tenho atitudes de adulto. Ou você acha que só você e o Gustavo que são os adultos daqui?" Riu com escárnio.
"Bom, o Vô ontem fez pirraça o dia todo e não almoçou porque foi contrariado pela dona Teresa. A Vó faz de tudo para chamar a atenção das pessoas, inclusive dissimular coisas. A Tia faz birra se alguém nos elogia ou fala bem de nós para ela, e você... Bom, você não age como adulta também. "
Flavinha queria dizer que sua mãe é inconsequente como uma adolescente de quinze anos e que coloca o próprio prazer acima de qualquer coisa, incluse o bem estar dos filhos e dos pais. Mas se contentou em terminar a frase daquela forma.
Vera a olhou com desdém. Em seguida deu uma risada de ironia misturada com despreso. Claramente, para Vera, Flavinha era bem pior que ela. Muito mais pecadora. Mil e uma vezes pior.
Flavinha se calou, ficou em silêncio perdida nos próprios pensamentos. Já estava frustrada e angustiada o suficiente para continuar qualquer tipo de conversa.
Vera começou a procurar as chaves que a pouco tinha guardado, e para isso mexeu em sacolas, muitas sacolas e plásticos de comprimidos.
Aquele barulho disparou o coração da menina que começou a suar frio e tampou os ouvidos. A dor que ela sentia na cabeça ao ouvir aqueles barulhos que pareciam estar dentro de sua mente, era insuportável. Rangeu os dentes e controlou a respiração. Seus olhos lacrimejaram.
Vera olhou com deboche. "Ah, sinto muito mas preciso mexer nas minhas coisas."
"Olha, você pode mexer à vontade, é só que o barulho de plástico me incomoda muito... Não é gracinha, é como se fosse uma doença, me incomoda profundamente, acho que tem algo a ver com o meu diagnóstico."
"Você quer que eu faça o quê? Utilize sacos de pano? Ah, preciso mexer nas minhas coisas, eu em!"
"Não é isso, só estou dizendo que não é gracinha, realmente me incomoda muito, chega a doer a minha cabeça... Ah, esquece, nem sei para quê estou perdendo o meu tempo te explicando, você não acredita"
Vera olhou com desdém e descrença, mas respondeu "Eu sei, vê se trata esse problema seu ai. Tem que olhar isso."
Elas conversaram mais um pouco, mas o desgaste da jovem moça era nítido.
Flavinha estava esgotada. Eram 23h00 e tudo o que ela queria era desaparecer. Se despediu de Vera, que saiu da casa para ir dormir com a avó de Flavinha.
A menina, com um suspiro, permaneceu sentada e em silêncio. Não entendia como, há 30 minutos atrás estava se sentindo muito bem, e agora, se sentia horrível. Se culpou. Em sua mente, somente um ser despresível se sentiria tão mal na presença da própria mãe. Ouviu de si mesma na própria mente que não serve para viver perto de nenhum ser humano.
Mas ao decorrer dos minutos, Flavinha se levantou. Abriu uma garrafa de vinho e serviu a taça que ganhou há dois anos atrás de alguém querido.
Pegou o notebook, e escreveu um conto.
Se acalme Flavinha, a noite ainda é longa. E você tem muito a viver. Certo?