O TEÍSTA E O ATEU

Meu amigo disse que me encontraria no Café Expresso, uma pequena portinha que servia os mais variados tipos de café. Como sempre, ele está atrasado. Na verdade, ele não se importa muito com esse pequeno detalhe chamado horas. Na concepção dele, o tempo é apenas uma farsa para aprisionar os pensamentos das pessoas e não permitir que elas tenham muito tempo para refletir.

Existem muitos paralelos entre meu amigo e eu. Ele está sempre atrasado, eu chego antecipado. Ele acredita que os aliens estão entre nós, eu penso que eles têm coisas mais importantes para fazer. E, o principal ponto de divergência, eu sou ateu e ele acredita até em Papai Noel.

Muitos questionam a nossa amizade, como pessoas tão discrepantes podem ter tamanho vínculo, chegando ao ponto de se terem até como irmãos. O que mantém a nossa amizade é justamente nossas contrariedades. Cada hora que passo em companhia dele, conversando sobre assuntos diversos, aprendo e cresço mais como ser humano.

Finalmente, ele atravessa a pequena porta e senta-se na minha frente.

— Está atrasado! Como sempre! — digo, mas sabendo que ele não se importa muito com essas questões.

— Mais vale minha presença, meu amigo, do que coisas banais como o horário. — Ele rebate, displicente.

— O que vai beber? — pergunto.

— Quero um cappuccino gelado.

Vou até o balcão e faço os pedidos. Peço minha bebida semelhante a dele.

— Sobre o que falaremos hoje? — ele quer saber.

— Vi uma postagem que você fez semana passada no Jornada Filosófica. — Jornada Filosófica é um jornal que publica artigos relacionados à filosofia, ciência, sociologia, religião e outras linhas de pensamento.

— O jornal que você desvaloriza o conteúdo riquíssimo que ele produz?

— Eu não o desvalorizo — rebato — apenas não se enquadra nos conteúdos que me agradam.

— Se te desagrada, por que ainda o lê? — meu amigo sorriu. Ele já me fez essa pergunta um sem-número de vezes. Apesar de saber minha resposta, ele gosta de ouvi-la. Segundo ele, eu ler esse jornal é a maneira de mostrar que estimo nossa amizade.

— Leio porque é importante para você. — Digo categoricamente.

— É muito satisfatório ouvir essas palavras de você, meu amigo. Mas sem mais enrolação, o que achou do artigo que publiquei? — meu amigo escreveu sobre a pré-disposição inata das pessoas acreditarem em divindades.

— Descordo do seu ponto. Não acredito que as pessoas nasçam com o “DNA” de alguma divindade. O que acredito é que as crenças culturais de uma pessoa a faz acreditar em algum deus.

— Nisso estamos de acordo, mas acredito que nossos caminhos se divergem quando falamos da origem das crenças. Quando vamos falar de algum deus, partimos do campo intelectual. Para haver uma crença, é necessária uma pré-disposição para ela existir; é preciso que dentro de nós haja uma fonte primária que nos impulsiona a acreditar. Por isso que não existe sociedade sem religião e por mais que se esforcem, até os ateus como você, meu amigo, acreditam em algo. A fé é uma condição inata.

— Com base em que você faz tais afirmações? — indago.

— Com base nos estudos sociais. Basta observar como as civilizações se organizaram ao longo da história. Você, meu amigo, como um bom ateu, já visitou o Museu do Ateísmo na Rússia?

— Ainda não visitei.

— As pessoas que frequentam aquele lugar veneram os objetos que estão ali de tal maneira que eu mesmo me impressiono com a fé deles.

— Não creio que seja assim.

— Mas você não pode desprezar os benefícios que a fé traz para o cérebro. A fé é a base da esperança.

— Ter fé na vida não vejo como algo ruim, mas direcionar isso para algum deus, não acho saudável. Quando isso é feito, deixamos de acreditar nas nossas próprias capacidades. Damos todas as nossas glórias aos seres mitológicos.

— Tudo não é mitologia, meu amigo?

— Como poderia ser? — eu pergunto.

— Nada nesse mundo é o que parece. Tudo parte das construções da consciência. — Ele responde.

— Onde você quer chegar com isso?

— Quando olhamos o mundo ao nosso redor, não o vemos como ele é. Vemos ele através das impressões que adquirimos a cerca dele. Se uma criança cresce em um lar onde ela é violentada física e emocionalmente, ela tenderá a ver o mundo como um lugar cruel e perigoso. Agora, se outra criança cresce em um lar amoroso e incentivador, ela irá amar viver e será mais criativa diante dos desafios.

— Como isso esclarece o nosso debate?

— Basta pensarmos da seguinte maneira, nós reagimos aos fatos conforme as informações armazenadas que temos em nossa mente. Se nós nunca vimos nenhuma divindade, se não sabemos como é um deus, então por que trazemos dentro de nós a crença em um? Como o primeiro ser humano chegou a ter consciência desse ser divino se ele nunca presenciou um? A resposta é que já viemos ao mundo com essa impressão do divino dentro de nós, desde a concepção da nossa espécie.

Fiquei em silêncio, processando essas alegações do meu amigo. Confesso que dentro da lógica apresentada por ele, suas falas faziam sentido. Não me senti comovido pelas explanações dele, ser ateu ainda é minha maneira de entender a vida. No entanto, não posso menosprezar as explicações dele.

— De fato, dentro do nosso debate isso traz luz para entendermos seus pensamentos. Entretanto, você esquece de analisar friamente que essas teorias cabem apenas no campo intelectual. Que é impossível provar a existência de um ser superior a nós.

— Isso eu não posso negar, é verdade que não há provas no sentido material da questão. Porém, nem só de materialidade se faz a compreensão da vida. Se a ciência não prova a existência de um deus, tampouco o refuta. Má você há de concordar que o universo existe numa precisão impressionante. Ou tudo isso é um simples acaso, ou alguém arquitetou o universo.

— Concordo quando pensamos na questão da precisão do universo e nos fatores que possibilitou a vida como a conhecemos. Mas criar fantasias não ajuda a compreender o porquê das coisas, é preciso investigar com os pés no chão, conforme a ciência nos concede recursos para isso.

— Ou, meu amigo, talvez seja necessário apenas termos fé. — Meu amigo disse em tom de quem encerra uma conversa.

— Bom, nunca saberemos quem tem razão. Compete a nós apenas teorizarmos.

Conversamos ainda por um longo tempo. Às vezes voltávamos ao artigo publicado do meu amigo, às vezes conversávamos sobre outros assuntos irrelevantes. Não importava o quanto meu amigo e eu discordávamos, era sempre um bom entretenimento estar com ele.

Felipe Pereira dos Santos
Enviado por Felipe Pereira dos Santos em 31/10/2023
Código do texto: T7921119
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