Entre sonhos e excesso de cafeína
Há alguns meses a insônia de Rita agravava cada dia mais. Ou melhor, cada noite. Era um tal de rolar para um lado e para o outro da cama, os olhos que não pregavam e a mente que parecia não ter descanso.
Isso é excesso de cafeína. Disse Sônia, uma colega de trabalho com quem desabafou o motivo por estar sempre com olheiras. Além disso, ela também sabia sobre sua afeição a xícaras de café e lata de coca cola.
Claro que não. Rebateu Rita. Tenho outros motivos para isso. Continuou convicta. Mas de fato se deu conta que já havia comprado três garrafas da bebida gaseificada e repleta de açúcar, e ainda era quarta-feira. Pelo menos o café descia puro e orgulhava-se disso. Nem mesmo algumas gotas de adoçante. O sabor inteiramente amargo lhe interessava mais.
O escritório estava agitado. Era dia de fechamento de folha de pagamento e ela e Sônia formava a equipe com mais três funcionários e uma estagiária. Pequeno demais ao seu ver para uma empresa com quase 80 funcionários. 77 para ser preciso. Mas Sônia gabava-se que elas davam conta.
De repente surgiu um papo sobre sonhos, encabeçado por Fred, o único homem da equipe. Ele sonhou que estava num jatinho sobrevoando a cordilheira dos andes, tudo corria bem até que o jatinho começou a titubear no ar, inclinando cada vez mais para direita. Ele estava com fone de ouvidos e tocava uma playlist de pagode dos anos 90. Haviam seis passageiros contando com ele, sendo três coreanos e dois franceses. Ele retirou o fone e começou a gritar que eles precisavam acordar, mas ninguém entendia português. Levantou e conseguiu chegar até a cabine, com alguma dificuldade a medida que o jatinho chacoalhava cada vez mais rápido. Por fim, chegou até o piloto que era nada mais nada menos que o Robertinho da contabilidade. E o copiloto? Perguntou Lucia já quase sem ar de tanto que ria. Então, aí que vem a parte mais estranha, disse Fred com seu jeito gaiato. Era o Robertinho também, só que sem a peruca.Nessa hora Sônia que mastigava um pão doce, puxou o ar e alguma migalha tomou o caminho errado durante a deglutição. Rafaela, a estagiária correu para pegar um copo d'água enquanto Rita dava tapas nas costas para tentar desengasgar a amiga. Lucia já não tinha mais forças para levantar da cadeira, foi a que mais riu desde o início da história. Era óbvio que ela era apaixonada por Fred e ele vaidoso que era dava alguns lampejos de esperança, controladas com uma maestria cafajeste que dosava uma bomba de amor e atenção com dias mais frios e distante. Todos sabiam, mas fingiam não saber, porque ambos eram casados.
Walquiria era a única que permaneceu com seu habitual mau humor, que já era tolerado por todos. Vinte um anos de empresa, foi uma das primeiras funcionárias contratadas e por sua proximidade com os chefes, dois irmãos sovina, muitas vezes ela acreditava ser uma também. E dava ordens deliberadamente, com uma autoridade que julgava sua por direito. Mesmo ela, soltou algumas risadas roucas que tentava controlar para que não saíssem muito altas. Gente, vamos nos concentrar, isso aqui tá um hospício hoje.
Ah Walquiria, o dia vai ser longo hoje, vamos rir um pouco. Disse Sônia já desengasgada e com os olhos lacrimejando, enquanto os limpava com um dos lenços de papel que sempre carregava na bolsa. Os óculos que sempre estavam no seu rosto, em cima da mesa, enquanto ela se recompunha. Seus olhos ficavam pequenos demais para seu rosto redondo e de bochechas rosadas. Aproveita e diz aí com que que você sonhou hoje, continuou, enquanto agora limpava as lentes que deviam ter no mínimo uns 5 graus cada.
Eu sonhei que a gente não conseguia fechar a folha, vamos trabalhar meu povo. Virou para frente da tela enquanto digitava com força, utilizando unicamente o indicador direito e esquerdo, como quem aperta o botão do elevador com raiva. Ela sempre comentava e se espantava com a habilidade da Rafinha e a forma como ela utilizava todos os dedos de ambas as mãos para digitar e não precisava olhar uma única vez para o teclado. Ah, esses jovens de hoje. Dizia com uma mistura de admiração e ironia, com o timbre típico de mais de trinta anos de tabagismo.
Lucia não se conteve e começou a contar seu sonho, alternando risadas safadas e com vergonha. E seus olhos que sempre buscavam pela atenção de Fred. Gente, eu sonhei que ia no circo com meu marido e meus filhos, estava tudo bem até a hora que chegou um palhaço sinistro no palco, ao invés de maquiagem ele usava máscara. O clima que era de descontração virou tensão. Os filhos choravam assim como outras crianças. Conforme o show ia ficando cada vez mais assustador algumas pessoas tentavam sair da lona, mas ela não tinha saída. Com os olhos fixados no palco suas mãos buscavam seu marido em vão. Quando se deu conta ele não estava mais ao seu lado. Começou a olhar nervosa para todos os lados em busca dele. Cada vez mais apavorada até que encontrou os olhos do palhaço, por mais apavorada que estivesse e com o frio já subindo a espinha, tentava mas não conseguia desviar o olhar. O palhaço começou a rir de forma sinistra, até que por fim tirou a máscara, e era seu marido. Acordou gritando.
Que horror. Disse Rafa assustada.
Conta pra gente seu sonho Rafinha. Disse Fred, com o jeito de quem sempre tentava seduzir. Lucia fechou a cara com raiva da pouca atenção dada por ele ao seu sonho também cheio de detalhes. E a forma como Rafaela ficou sem graça com a forma com que Fred ria, só fez sua implicância pela estagiária aumentar. Pelos corredores era sabido a sua antipatia pela menina, que ela julgava metida demais para sua pouca experiência. Mas Rita sabia que na verdade era pela menina ser jovem, bonita e cheia de vida. Aquela luz que foi se apagando para elas ao longo dos anos, ainda estava bem viva em seus olhos.
Ah, meu sonho não foi nada demais gente. Eu sonhei que meus amigos viajavam sem mim e eu ficava triste. Mas aí chegava meu namorado com um monte de presentes e um urso gigante e na verdade era uma festa surpresa para mim.
Que lindo Rafinha, disse Sônia. E você disse que não era nada demais. Ah quem me dera eu ainda sonhasse com meu marido assim, mas meus sonhos estão piores que os da Lucia. Risadas nervosas no ar.
Lá vem você implicando comigo né. Então conta aí pra gente.
Ah Lucinha, cê sabe que eu te amo.
Gente, essa noite não lembro o que sonhei, mas na segunda-feira eu sonhei que estava na Bahia.
Ô coisa boa, e você dizendo que seus sonhos estavam piores que os meus. Completou Lucia.
Por fim Rafa falou, e você Rita, só falta você contar seu sonho. De repente todas as atenções estavam voltadas para ela, até Walquiria virou. Essa eu quero saber também, conta aí Rita. Gente, eu tenho insônia, nem dormir direito eu durmo, quanto mais sonhar. Disse ela, mentindo.
Ela lembrava sim a última vez. Foi na semana passada, quando a sua dentista Dayse, com quem ela estava fazendo um tratamento de canal ligou desmarcando a consulta. Ela sonhou que deitava no colo dela, ajoelhada e chorando muito pedindo por favor para ela não ir embora, ela não aguentava mais ser abandonada. Enquanto Dayse sem muita emoção dizia que aquela separação era necessária.
Sentiu vergonha só de lembrar de seu sonho mais uma vez. Começou a mexer em alguns papéis e pouco a pouco o clima descontraído foi cessando. Sônia tinha razão, o dia ir ser longo. Pouco a pouco todos iam se ajeitando na cadeira e iniciando suas tarefas costumeiras.
É meu povo o papo tá bom, mas vou lá pegar um cafezinho.
Fredinho meu amor, eu quero um também. Disse Lucia, esquecendo a raiva de minutos atrás. É claro meu amor, com três gotinhas de adoçante acertei?
Como sempre né, você é um amor.
Rafinha, quer também?
Eu não bebo café esqueceu?
Ah, é verdade minha linda, quer alguma outra coisa? E lá ia Lucia fechar a cara novamente.
Como pode alguém não beber café? Ah, esses jovens. Soltou Walquiria sem tirar os olhos da tela. Enquanto o povo conversava ela já tinha virado umas três xícaras.
Sônia também recusou. E bebia na sua garrafinha de água, após já ter tomado café em casa e comido o pão doce que a fez engasgar. Equilíbrio é tudo, brincou.
E você Ritinha, vai querer?
Quero sim querido, traz uma xícara para mim. E que Deus queira que hoje não seja requentado.
O seu é puro né?
Sim, puro.
Não sei como você consegue Ritinha, completou Sônia.
Eu gosto assim, amargo e quente.