CHACINA CHIC ("DOON") — II—

CLUBE DA LUTA (“DOON”) —II—

Por isso não gosta de falar. Tudo bem, agressão verbal gratuita, lei natural da boca, autoafirmação banalizada. Essa é mais uma razão por que deseja ser incomum. Está a oportunizar “O Outro” nele. Lembra-se da opinião de Ouspensky sobre pessoas comuns: elas vivem constantemente em estado de sono, de inconsciência, mesmo quando caminham pelas ruas, trabalham, dirigem carros ou se divertem. Pior, no sono estão passivas, no semissono agem por compulsão, como se não fossem responsáveis por seus atos. Tudo que lhes acontece vem de fora, do virtual. Vivem de uma subjetividade com sensações de achar-que-gosta, achar-que-não-gosta.

Pessoas ditas normais não sabem nem reconhecem o que é real. Ignoram as forças que estão a atuar sobre suas vidas. Conrad acha que despertar deste sono é o único grande problema de cada ser humano que merece chamar-se humano. Mas ele não sabe como sair fora dessa bolha envolvente. Sabe que despertará, nem que para isto tenha de promover uma tragédia menor, dentro do incomensurável quadro psicótico da tragédia coletiva, existencial, nacional. Pensa na namorada, patricinha juvenil, estereótipo socioeconômico, rica, de mentalidade suburbana, apesar de ser classe média alta. Ela expressa-se no dialeto das garotas que frequentam raves, chegada em Ecstasy. Incorpora sim, o interesse do consumismo chique, sem ambição pelo crescimento intelectual.

Sozinho na toalete, exercita essa sensação de pensamentos em conflito. Ao mesmo tempo numa velocidade intensa, própria de quem está sob efeito de picos de coca. A namorada fez recentemente lipoaspiração. Tirou as gordurinhas em excesso. Seus “pneus” à altura do baixo ventre estavam a incomodar a vaidade exacerbada. Seu ideal de aparência, tipo garota dourada do sol de Ipanema, sua ambição, é que seu balançado seja mais que um poema, coisa mais linda para se namorar.

Seu ideal de liberdade ela recentemente realizou: livrou-se, numa clínica de lipoaspiração, dos excessos de gorduras nas coxas, seios, ventre e bunda. Não tinha nenhuma afetividade por contornos do corpo com estrias. Lipo aspirou-as. A lipoaspiração livrou-a de muitas ansiedades e defeitos de fabricação gordurosos. As memórias antigas e novas perpassavam por sua cabeça de dinossauro que não se quer domesticar. Ele e Ângela formal um casal jovem e narcisista. Não podem fugir do determinismo de classe. Não sabem como isso lhes parece impossível: sair fora de seus vícios de linguagem, de seus ritos de passagem.

Tendem, ambos, ele e ela, a conceder razão ao dramaturgo pernambucano/carioca que afirmou: “não há pior forma de solidão que a companhia de um paulista”. Acham-no esquisito por ser contra o preconceituoso bairrismo que há no Sudeste maravilha que se julga, de algum modo, superior ao povo do nordeste brasileiro. Gente é gente, igual esquimó, astronauta ou homem do caranguejo. Cansou dos preconceitos, dos virtuais e manifestos. Osa colegas de faculdade nos cochichos o chamam “paraíba”, “baiano”. Maneira de sentirem-se melhor do que ele.

Pensar que esses caras, a partir da próxima semana, estarão a diagnosticar, medicar, operar pessoas em salas de intervenção médica. Como é que esses doentes vão indicar a cura de doenças??? Ângela talvez ignore, mas compra as gorduras das celulites reprocessadas nas butiques chiques dos shoppings, sob a forma de sabonetes, cremes para a pele de alto custo. Ao adquiri-las está a comprar os ésteres dos ácidos que saíram das estrias, dos excessos dos tecidos adiposos reprocessados, que saíram ou foram aspirados durante a lipoaspiração das nádegas.

Nada se perde, tudo se transporta na lógica do coração das trevas. Desenvolve-se nele irado senso de rejeição. A parte dinossauro de sua cabeça, de alguma forma está a justificar os processos e paradoxos cotidianos do capitalismo selvagem do qual, ele e a namorada são partes privilegiadas. O dedo no gatilho do fálus, da submetralhadora, dispara por reflexo especular. O espelho do banheiro estilhaça-se. Agora chegou a hora de atirar na plateia do cinema. E se alguém atirar nele e ele morrer??? Ir fundo nessa viagem, nesse astral metropolitano, é dose. Ele precisa dá vazão ao leão assassino que há nele, nessa arena de cristãos pacificados. Ainda assim sente que faz isso por ser parte de uma geração traída por todos os que o antecederam na crença de deus, pátria, família e liberdade. Quem sabe se depois de morto, há de sentir-se mais ancho e confortável como no poema de João Cabral de Mello Neto. Sua confortável vida também não passa de uma vida severina.

Da vida ninguém escapa. De qualquer forma será também vítima dessa chacina. Ratatatátatá... Ratatatá... Tátatatá. A mídia vai cair em cima dele com suas reportagens escritas e filmadas por chacais da notícia que precisa renovar os noticiários sensacionalistas. Rejeição é dose. É overdose de abandono e desaprovação. Sentir-se excluído de qualquer interação social pertinente ao processo pessoal de crescimento moral. Mas, onde está a moral dessa sociedade de assassinos mútuos???

RRRATATARATATATÁ, PAM-PAM-PAM-PAM-PAM-PAM. A rejeição limite, violenta, do romantismo extrema, carregado de ódio e de pólvora. Ele também é parte do eu coletivo que dorme mais cedo quando pode. Que acorda mais tarde para outro dia de sonambulismo no escritório, nas ruas da cidade. Na real realidade, não consegue dormir nem sonhar. As sensações rotineiras no ambiente social randomizado não permitem. Que sonhos poderia ter quem sobrevive nas sensações deletérias dessa real idade??? As últimas esperanças de normalidade se esvaíram.

Há de ter cor agem de recusar ser mais um membro efetivado numa das Torres Negras da máfia de branco. Ah, a suposta respeitabilidade dos jalecos médicos. A última esperança de ser alguém diverso, em sete dias será cinzas. Qualquer coisa, sim. Entrar na caixa de Pandora da medicina, não. Precisa fazer a coisa acontecer agora. Todos os seus débitos com o consumismo estarão, finalmente, pagos.

Não vai matá-los, vai libertá-los desse ciclo vicioso, rotineiro, de hipocrisias: dissimulações, fingimentos, imposturas. Vai livrá-los de cada gesto em busca de mais salário. De cada grana faturada na sala de cirurgia, numa operação de olhos com finalidade de enriquecer o oftalmologista. Continuar a visualizar toda essa carga pesada de horror??? Ah, esses inocentes “inúteens” nos shoppings centers dos corações solitários. Quem está a atirar neles é o eu coletivo da coletividade inconsciente dos danados. Não quer continuar a fazer parte desse Mortal Kombat.

A lareira eletrônica da telinha da sala de jantar aquece os neurônios dos habitantes da sala de jantar dos corações solitários. Conrad não se julga doente mental. Todos os estudos sobre a sociedade Homo sapiens voltam ao início do mesmo prognóstico: sem que haja confusão residual, há a garantia do desequilíbrio neural. Não se visualiza uma janela de saída para a educação recuperar os milhões de dementes que educou anteriormente. A cegueira é global. E globalista.

Antes o problema fosse “só” esse. Uma boa randomização garante que os grupos estudados tenham prognóstico igual no início do estudo. A partir deste ponto, temos que garantir que assim permaneçam ao longo dele. Na próxima postagem, falaremos sobre um dos fatores relacionados à manutenção deste equilíbrio prognóstico: o cegamento. A cegueira pessoal e social irreversível. Seis anos de medicina, quase sete, ele sabe: os olhos da sociedade estão escancaradamente fechados, tal qual no filme homônimo de Stanley Kubrick.

As taxas de homicídio associadas à doença mental diminuíram nos últimos quarenta e cinco anos. Essa chacina nada tem a ver com doença mental. Os olhos estão escancaradamente fechados. Precisa-se de muito radicalismo na tentativa de abri-los um mínimo possível. Após a tentativa frustrada de metralhar toda a plateia do filme, os seguranças garantem que Conrad não seja linchado. O Ratatatatatá travou. Policiais conduzem-no algemado.

Os babacas jornalistas, as academias dos artistas da comilança na lareira eletrônica da sala do sofá. Os mestrados e doutorados em psicologia e psiquiatria estarão dando entrevistas ao jornalismo educado nas perguntas e questionamentos tatibitates. As mesas redondas do debate estarão em franca ascendência. Os intermináveis surtos de lero-leros sobre rejeição, abuso sexual infantil, bullying escolar e familiar. Pouco dizem a esclarecer a agressão e intimidação repetitivas da programação televisa do mais baixo astral. Os programas que educam para a imbecilização em massa, de uma sociedade já por demais idiotizada pela crença num deus invisível, numa família risível, numa pátria de raves e jogadores de futebol, e numa liberdade de boteco.

Por que não dizem que a profissão de médico, se define, tal qual naquele poema de Browning, no qual um jovem deseja ser nomeado cavalheiro. Cavalheiro médico, fiel escudeiro da ruína e da desolação espiritual que espera todo estudante de medicina que se lança, sabendo ou sem saber, no fatal destino de torturador experimental. A Torre Negra dos hospitais está aí para ser vista criticamente.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 24/10/2023
Reeditado em 26/10/2023
Código do texto: T7915947
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