O MITO DO ETERNO RETORNO

Sob a folhagem espessa do pé de jambo sacudida pelos ventos de agosto, brincavam as crianças em algazarra, alternando aqui e acolá a risadagem com brigas infantis, em transbordamento das energias dos verdes anos. Dona Maria, avó dos pequenos, sentada em uma cadeira de balanço de ferro revestida com cordões de plástico azul e branco, dava os últimos retoques a pinça e gilete às sobrancelhas.

--- Olha essa cachorrada aí! Se eu for aí, meto a mão em tudinho e acabo com essa zona.

Os peraltas, para evitar o fim do lazer, diziam concordes à avó que não havia nada, que não estavam brigando à vera, que tudo fazia parte da brincadeira. Eram dois meninos e duas meninas. As meninas, irmãs, primas dos meninos irmãos. A mais velha entre os quatro tinha por nome Ana, sua irmã chamava-se Luíza, o mais velho dos meninos acudia pelo nome de Renato e seu irmão pelo nome de Pedro. Eles inventavam todo tipo de divertimento no quintal da avó. Com tijolos jamais usados na reforma muitas vezes adiada da casa de dona Maria, construíam casinhas e nelas colocavam seus bonecos e bonecas, fazendo às vezes de sociedade de gente grande. Também gostavam de jogar queimado; era esse o desporto que mais desentendimentos plantava entre os primos, pois não raro, os meninos metiam boladas com força nas meninas para vingarem-se das unhadas que delas recebiam.

--- Vovó! Seu Renato me deu uma bolada no peito! Denunciava chorosa Ana.

--- Dê uma nos cunhão dele também, para ele ver o que é bom! Eu já disse, seu eu for aí quebro tudinho de cacete... Já tô me arretando aqui...

--- É mentira, vovó, é mentira dessa nojenta; é ela que fica dando unhada na gente; essa unha de Zé do Caixão. Se defendia Renato.

--- Unha de Zé do Caixão é da tua mãe, aquela galinha de xangô! Retrucava Ana.

--- E a tua mãe?! Aquela quenga. Dizia baixinho, para não ser ouvido por dona Maria, mas o suficiente para ser ouvido por Ana e ofendê-la.

--- Ui, tan, tan, tan... vou dizer a mainha; olha, vovó, Renato chamando mainha de quenga!

Lá vinha dona Maria segurando um cinto dobrado, instrumento de disciplina para os netos tumultuários. Todos se dispersavam pelo quintal, Ana, Luíza e Pedro se rindo de Renato, enquanto este tentava escapar aos beijos do cinturão que procuravam acariciar as suas carnes de menino desbocado. Os golpes do cinturão rasgavam o vento fazendo som de assobio frouxo, mas nenhum deles pegava em Renato, pois ele era naturalmente mais rápido que dona Maria na corrida pelo quintal.

--- Vem cá, safado! Vem cá, que eu te acerto! Seu quizila! Seu peste! Rosnava dona Maria, arfando, apoiando as mãos nos quartos, enquanto Renato se trepava pé de jambo acima. Você vai descer... você não vai dormir aí... quando você descer, eu te pego.

Lá por cima, entre os galhos do jambeiro, Renato ia colhendo jambos maduros e mesmo os ainda inchados, devorando quantos a sua gula de menino olhudo lhe solicitava, e atirando para baixo, na direção de onde estavam suas primas e seu irmão, os caroços roídos e babados, para lhes afrontar, provocar. Lá do alto Renato via o sol descendo por detrás das nuvens cor de chumbo, laranja e roxo, no horizonte onde o céu parecia pegado com a terra coberta de telhados de construções humanas e copas de árvores. Os pardais esvoaçavam pelos céus, chiando, à cata dos seus ninhos, enquanto os morcegos começavam a sair para a vida da noite. Renato nessas horas temia mais a chegada da noite que as pancadas que lhe desse dona Maria, então apeava do pé de jambo e aparecia mufino, desconfiado, à porta da cozinha da avó, por onde vinha cá fora o cheiro de café novo e de cuscuz ao fogo.

--- Entra, safado! Vai tomar teu banho; mais tarde tua tia te acerta. Passa!

Essas palavras eram a um só tempo como que boas-vindas e sentença de pena capital para Renato, mas ele logo esquecia a sua rabugem de ameaça e se metia para o banheiro, contente, para lavar o corpo intocado dos afagos da disciplina de couro, mas carregado de suo e terra de mais uma tarde inteira de diversão no quintal da casa nº 16.

***

A casa foi enfim ampliada. Acabaram-se então com os tijolos que antes serviam de brinquedo às crianças. O quintal foi engolido por novos cômodos, e com ele o pé de jambo, árvore que dona Maria encontrou já plantada, taluda, dando frutos, quando veio morar aí há trinta anos. Tudo transformou-se; e não foi só a casa nº16 que sofreu mudanças.

Desde a última tarde de brincadeiras no quintal, última tarde que chegou sem apresentar jamais que seria a derradeira, já lá se iam dez ou doze anos. Ana, cresceu; Luiza, Renato e Pedro também. A natureza substituiu os cabelos pretos de dona Maria por um chumaço de fios de prata, e junto com os cabelos pretos foi-se também os seus cuidados feminis, as suas vaidades de viúva bonita, encorpada, ainda transpirando os ares de jambeiro viçoso em primavera estendida, prolongada.

Ana casou-se e Luiza também; Luiza primeiro que Ana. Renato não casou, nem Pedro; mas o número de netos de dona Maria sofreu incremento; nasceu André, irmão dos meninos; nasceu também Eduarda, filha do terceiro dos três filhos de dona Maria. Mas nunca que se ouvisse outra vez algaravia de crianças brincando, brigando, na casa nº16. Tudo mudou. Eu mudei. Mudei o tanto que o destino quis que mudasse em mim, mas sem deixar de ser eu, sem deixar de ser aquele menino que escalava o pé de jambo para fugir da fúria duas vezes maternal da minha avó.

Não entendo bem com a necessidade de o tempo passar, das coisas e pessoas boas serem engolidas pelo passado e desfeitas, deprimidas e desprezadas pelo futuro que chegou, que se fez presente, mas presente de grego, desses presentes que entram na alma com festejo e já dentro matam, destroem e fazem chorar. Quem lamentará Hécuba? Quem desenterrará as vetustas ruínas da sagrada Ílion? Quem? Eu paro e penso que nas ruas da cidade de Heitor e Príamo também correram e brincaram crianças, pequenos indivíduos que a existência, com golpes ainda mais fortes que os do cinturão da minha avó, forçaram a entrar para sempre no passado, no tempo do impossível retorno. E acabando de pensar essas coisas, me dou conta que devo voltar ao trabalho, que a vida continua aqui embaixo.

Davi Felismino de Souza
Enviado por Davi Felismino de Souza em 11/10/2023
Reeditado em 11/10/2023
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