O CONVITE
O amigo Figueiredo convida-me, e a outros partícipes de uma Oficina Literária, para um fim de semana na casa de praia. Aceito. Chego lá numa sexta-feira, 20 de abril, vinte duas e trinta e cinco. No sítio, um tanto isolado, encontro um bando de pessoas algo estranhas. Mulheres falando sisudo, tatuagens nos ombros musculosos. Muitos dos marmanjos, excessivamente delicados, apertando-se, as manoplas alhures. Umas tantas quantas pessoas já entradas na terceira idade, surpreendentemente energizadas.
Aquele filho da mãe estará pensando que embarquei nessa grei? Fico na dúvida, será mesmo essa a casa do Figueiredo? Leio no verso do cartão o endereço, número: conferem. Ou será que, na realidade, essa é a turma dele? Não, não pode ser. Lembro de quando estivemos numa colônia de nudismo em Curitiba. O cara ficou tão excitado ao cruzar a ex-namorada, que teve de ficar de cócoras para o "bráulio" não ficar dando bandeira.
Pode o cara estar a endossar essa sacanagem gls? Ou será que depois dos setenta, resolveu falar fanhoso, afetando os verbos? Não faz sentido. Resolvi entrar e conferir a balbúrdia. A coisa estava mais pra suruba punk. Nesse canto da sala duas namoradas concentradas num chupão de língua. Sentados no sofá, dois baita barbudos engoliam os pelos esbranquiçados dos bigodes, fazendo gracinhas com os dedos das mãos na cintura e ombros.
Dançando em meio à sala e em parte da área do terraço, umas três dezenas de seres de libido “entendida”. O som mix dos metaleiros misturava-se ao sem cerimônia de carreirinhas da dona branca sendo aspiradas de uma bandeja grande de prata. Não, definitivamente, não pode ser a casa do Figueiredo. Ele sempre detestou drogas. Tão brusca mudança terá sido influência minha? Não sei. Muitas vezes ficamos de lero sobre a possibilidade de pessoas que lidam com criação literária destravarem a mente com uma cafungada de leve, ou com as brumas da cidadela mágica da maresia de um baseado.
O Figueiredo sempre descartou a possibilidade. Achava que quem cria, cria na careta, na cara dura, não precisa de motivação neuronal. Estou com a Deisinha, uma gata do vamos ver, do chega mais. Ela não se intimida com pouca coisa, já foi tirando uma nota de dez reais da bolsa e entubando uma tira de coca da bandeja. Não fosse a última, também não me teria feito de rogado. Apreensivo, não vejo a hora do Figueiredo chegar todo chamuscado de lantejoulas, me dá um abraço. Deus do céu, o cara pode até vir dando uma de beijoqueiro.
Os anos setenta possivelmente vão voltar na segunda década do Terceiro Milênio, ou na terceira, mas ainda estamos em novembro de 1999. Dirijo-me até uma porta num muro interno que separa o pátio de uma área aberta. No descampado, mesinhas cercadas de cadeiras e tamboretes, comes e bebes à vontade, uma churrasqueira e alguns espetos de linguiça, salchichas e carnes.
Um torpedo de marijuana circula de mão em mão. A fumaça tece desenhos fugazes no ar parado da noite de verão. Pinta um complexo de culpa. Quem diria, minha influência foi tão longe. Será que o Figueiredo resolveu aprontar todas, viver tudo que tem direito e acha que não viveu? Nunca é tarde pra ser feliz. Talvez tivesse a acreditar que a mente dele ía abrir que nem paraquedas. Parece que ele levou mesmo a sério aquele dito que eu costumava repetir em conversas informais: “A mente é como paraquedas, só funciona quando aberta”.
Uma dúvida apazigua a consciência: ele não está em lugar nenhum da casa. Se todas essas pessoas forem da turma dele, com certeza jamais sentir-se-á um idoso abandonado. Isso mesmo Figueiredo, antes tarde do que nunca. A produção literária dele vai triplicar, quadruplicar? Toda essa lazeira de lazer vai mesmo abrir novos caminhos para a criatividade literária, ou ele vai começar ter palpitações cardíacas, achar que sou um grande filho da mãe, se é que todas essas mudanças devem-se mesmo à minha influência.
Noto que alguns olhares começam a ficar interrogativos, hostis, como a sugerir: “Que é que esse careta faz na minha festa?” Pego a Deusinha pelo cotovelo, sem maiores explicações vou puxando ela pra fora do ambiente, que me parece, pode ficar meio sobre o carregado.
Entramos no carro e trato de sair fora. Lembro agora que aquela casa o Figueiredo vendeu há pelo menos seis meses. O cartão com endereço é antigo. A praia dele é outra, a casa também. Obrigado, Figueiredo, por se manter o mesmo. Ufa, estou mais leve, sem responsabilidades sobre a suposta nova conduta do meu amigo. Em minha juventude fui preso, acusado (erroneamente) de subversão e suposta corrupção de menores. Faltava-me agora, ser taxado de corruptor de meus amigos da terceira idade.