Babilônia, de amores, pecados e afetos
Não. Mil vezes, não!
Recuso as estéticas perfeitas
Não idolatro deuses
Não. Mil vezes, não!
Gosta de panquecas?
Ora, ora, meu mundo por uma panqueca.
Afora os desaforos, que mais querer?
Que mais suportar?
Que mais querer suportar?
Faz muito tempo.
Um tempo já quase esquecido
Já quase trancado no baú e as chaves jogadas no mar.
Terra à vista!, grita o marujo imaginário dos romances mequetrefes do falido doutor honoris causa sei lá do quê.
As flores de plástico não morrem, diz a canção.
Todavia, também não exalam o doce perfume da jasmim
Quem cantará a última canção, antes que a casa feche. Sairão os músicos e técnicos às ruas, numa procissão carnavalesca aos modos de Fellini?
Sabe, pequena, a fada madrinha se aposentou. Não aguentou o tranco; surtou, despirocou de vez, tantos anos de trabalho intermitente, que surtou. Hoje, hoje tá lá, velha e cansada. Sem ânimo e sem vida, talvez tenha na lembrança os tempos de glória. Reclama de tudo; coitada. A vida passa, mesmo para as fadas madrinhas.
Na encruzilhada da esquina do mundo,
ficou na placa indicativa
O endereço riscado, com prego.
Casa vazia, esquecida, no meio de tantas casas.
Jardim seco.
No telhado, um galo gira
O vento é forte.
O galo gira tão frenético!
Não há vida. Tudo silêncio, sem vida.
Sensação vazia, de vazio peito.
Hummmmm, coisa esquisita!
Não. Mil vezes, não!
Nos jardins suspensos da Babilônia, Zé Bigorna, rei da boca e do bico, manda pra Lourdinha um aviso: "amanhã é dia de arrumação, não falta"
Lourdinha é a moça dos favores. Lourdinha é a bicha favorita do Zé e do Dedo Mole. Ambos são amigos, desde moleque. Dividem tudo; até Lourdinha,
Lourdinha tem uma queda especial por...
"Hoje é dia de arrumação, não falta"
Lourdinha recebeu o recado. Vai fazer cabelo, usar perfume, diz que Zé é Marco Antônio, o imperador de Roma e ela é Cleópatra, a toda poderosa do Egito. Zé Bigorna gosta de perfume. Dedo Mole é bruto. Criado na dureza de chão batido, nunca foi à escola. Sabe ler as matas, os brejos; sujeito matuto. Conhece cada fresta de fuga. Cada barraco. Das letras, das letras não sabe nada, pra isso, tem Lourdinha e Márcia.
Não. Mil vezes, não!
Ontem nasceu o filho do Zeca. Menino bonito! Soraya, a filha da empregada manca, acabou de se formar. Orgulho da família. A primeira com diploma. A família sente muito orgulho de Soraya. Fez a faculdade com um barrigão que pensaram que ia ser gêmeos. Jorge é pesado, nasceu com quase cinco quilos! Menino grande demais pra mãe tão pequena, disse Vó Joana; Todos riram.
É bonito, muito bonito. Quando Lourdinha passa cheirosa e de cabelo arrumado, todos sabem, é dia de arrumação. Zé Bigorna distribui doces e paga bebidas pra todos. É uma festança sem fim. Lourdinha cheirosa. Hummmmm, dia de arrumação. Dia de trocas. Dia de abraços e amassos. De promessas formais, de promessas eventuais.
Não. Mil vezes, não!
Menino Dinho, filho mais novo de dona Manú, foi pra escola. Deu hora de chegar e não chegou. Ronyvon, o mais velho, manda Fábio ir atrás. Na escola, Dinho não apareceu, faltou, falou dona Maria, mãe de aluno, amigo de Dinho e merendeira. Todos preocupados. Zé Bigorna, amigo de todos, manda gente procurar. Dona Manú chora.
Não. Mil vezes, não!
Quando o dia nasceu, nem o galo deu sinal. Babilônia estava triste. Nunca tinha acontecido aquilo. Primeira vez que acontece algo daquele jeito. Babilônia fez minuto de silêncio. Zé Bigorna, Dedo Mole e Lourdinha, juntos, de mãos dadas, levam flores. Dona Manú olhou as flores. Silêncio. Babilônia está triste. Dinho não vai terminar os estudos.
Ontem, na hora da novela, Márcia pegou, na prateleira, no meio de tantos outros, o livro do Desassossego. É a segunda vez que lê. Mas dessa vez, não vai ler sozinha. Dedo Mole ouve com atenção cada palavra. Silêncio. Somente o som das palavras. Não vai ter novela. Márcia lê. Dedo Mole ouve com atenção.
Não. Mil vezes, não!
A vida não será interrompida. Babilônia dorme. Dorme para acordar e deixar que o rio da vida siga seu leito.
A bicha louca do 43, Renilda, que já foi Mário, se converteu, assim ela diz, à bichice quando viu Anita Ekberg, feito deusa, na Fontana di Trevi. Também não se esquece de Sofia Loren. Quando bebe, grita para todos ouvirem "Anita e Loren, um desbunde de beldades, foram minha alforria, "descobri a mulher sufocada que havia em mim!" Mario é passado distante; precisa ser esquecido, precisa ser sepultado para Renilda ressurgir renascida e bela. Precisa ser a própria Fênix que ressurgiu das cinzas.
Renilda e Lourdinha, duas beldades numa Babilônia cercada de necessidades. Numa Babilônia, corrompida nos próprios hábitos, tal qual a antiga. É nessa Babilônia, carente de feitos e afetos, que Lourdinha e Renilda, com seus corpos e copos, atenuam os próprios desejos e satisfazem os demais. É nessa Babilônia que Márcia lê os livros e sonha seus enredos.
Não. Mil vezes, não!
É do terreiro. A mulher que cuida do menino que perdeu a mãe na enchente, é mulher de terreiro. Em Babilônia, há espaço para todos os santos e credos. Todos os deuses, mitos e credos, como se não houvesse razão suprema, convivem sem conflitos. Babilônia, micro-mundo de um mundo em constante evolução, codifica nos seus espaços sem fronteiras a diplomacia do saber viver.
Zé Bigorna e Márcia, irmãos de sangue, se criaram unidos numa cumplicidade sem comparações. São tão unidos, que muita gente se esquece que perderam mãe e pai numa noite de intensa operação na Babilônia. Zé Bigorna e Márcia, irmãos inseparáveis. Márcia, com seus livros, Zé Bigorna, dono da boca e do bico.
Renilda, que já foi Mário, aguarda na porta do barraco. Clodoaldo, o vigia da academia chic, que quer se separar da esposa, tem quatro filhos, pra ficar com Renilda, a Anita Ekberg, da Doce Vida que espera ter com Clodoaldo.
Amanhã, Lourdinha, a bicha Cleópatra, não vai arrumar cabelo, nem passar perfume, Dedo Mole é homem bruto.