A Dura Vida de Um Gato – Patriarca
27.09.23
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Faz dois anos que eu e meus donos mudamos de casa.
É uma casa grande, térrea com gramados na frente e atrás, vários cômodos e um mezanino com acesso por escada em caracol. Local interessante e no qual passo longas manhãs dormindo ao sol deitado preguiçosamente em um tapete felpudo.
Hoje, estou totalmente adaptado a ela e aos meus donos. Gosto muito daqui e deles, principalmente do homem, por quem tenho amor e ele por mim. Vivo em seu colo, quando tenho oportunidade. Sou feliz!
É a quarta mudança que fiz, mas pelos menos esta com os mesmos humanos que adotei. Um bom sinal, ou talvez, esteja envelhecendo e querendo tranquilidade, talvez.
Ao mudarmos, colocaram-me no primeiro dia em um banheiro mínimo para que não fugisse. Ora, por que fugiria se os adotei? Eu não entendo os humanos.
Passei um dia e uma noite encostado a um canto do maldito e frio banheirinho, em protesto, pois não comi nem bebi nada. Estava revoltado!
-Querida, vamos soltá-lo. Coitadinho! Ele não saiu do canto desde ontem e não comeu nada da ração que deixamos – disse o homem.
-Tá bem!
Abriram a porta do banheiro e me aguardaram sair. Eu, com toda a minha insolência e fleuma, mantive-me no canto frio. O homem chamava-me:
-Vem “Pébita”, vem vamos conhecer sua nova casa, vem – triscando os dedos para que o acompanhasse. E cá entre nós, “Pébita” é muito pior que “Pebas”, meu nome dado por eles, mistura de perebas com pidão. Francamente, não dá mesmo para entender os humanos.
Saí altivo e calmo cheirando todos os cantos da casa. Depois, fora dela, senti um odor familiar, da antiga moradia embaixo do carro. Fui lá e fiquei deitado pelo resto do dia.
O homem vinha frequentemente e falava com voz carinhosa para que comesse um pouco, balançando o pote de ração, como fazia para me chamar na outra residência. Não estava com fome. Esperava anoitecer para fazer o reconhecimento da região, ver se havia outros gatos e gatas. Precisava me localizar e me mostrar a todos que havia um novo gato na rua.
A noite chegou. O homem veio me ver, e carinhoso, deu boa noite. Também, avisou que tinha comida no meu pote. Fechei os olhos para ele em sinal de agradecimento. Entrou e fechou a porta da entrada da casa.
Saí debaixo do carro e me espreguicei longamente, pois passar o dia todo deitado em uma só posição, não é para qualquer um, mesmo para um gato.
Senti os cheiros da casa, de cada canto e principalmente do carro e dos dois humanos, para que pudesse voltar.
Também, marquei o meu território domiciliar, urinando em vários locais no jardim para que os outros gatos da região soubessem da minha existência.
Subi no muro baixo, pulei a grade de madeira acima dele e fui direto para o tronco da árvore plantada na calçada em frente a casa. Absorvi o odor das folhas e pulei para a rua.
Os cachorros das casas vizinhas, como sempre, começaram a latir bobamente. Ignorei-os. Nós, gatos, pouco nos preocupamos com eles, e até os instigamos, passando perto e fugindo agilmente, de brincadeira. Só fazem barulho. Só!
Segui calmamente pela rua deserta, com passos lentos e silenciosos. Observava os arredores atento.
Fui até a esquina, e então, vi um gato macho, rajado de branco e beije, olhando-me fixamente. Veio com andar agachado em minha direção e parou a poucos metros com o pelo todo eriçado, olhos semicerrados e miando ferozmente mostrando-me os dentes arreganhados. Encarei-o da mesma forma, aumentando o tom agudo do meu miado, como um grito de guerra.
Ele me atacou com sua pata dianteira direita de unhas esticadas e afiadas tentando atingir o meu rosto, emitindo um berro alto e forte. Seu golpe passou raspando, pois pulei por sobre ele e cravei uma mordida firme no seu rabo e não larguei. Ele se debatia e uivava de dor.
Outro humano saiu da casa da esquina com a gritaria que fizemos. O gato era dele! Chamou-o com voz agressiva e brava:
-Patriarca? Já pra casa seu sem vergonha, está na rua de novo! Já pra casa!
Soltei-o e Patriarca saiu em disparada para lá. Pela forma como lutou, vi que não era um gato de rua como eu, mas um “patriarca” criado com muito luxo e esnobismo. Saí vitorioso desta vez. Ele, pelo menos, não mais me enfrentaria na rua. Mas poderia ir até a minha nova casa e tentar demarcar território.
Continuei a prospecção, seguindo em frente pela mesma rua, e na casa seguinte à do Patriarca, encontrei outro gato, preto e branco como eu, quase uma foto minha. Era bem mais jovem adolescente talvez. Estava no gramado e acompanhava-me atentamente com o olhar. Não me atacou. Não lhe dei atenção. Segui adiante comemorando a minha vitória sobre Patriarca. Patriarca, que nome esquisito, não? Os humanos são difíceis de compreender, realmente!
Andei por toda a redondeza da casa nova nesta primeira noite. Voltando ao raiar do dia, pelo mesmo caminho inicial, vi que Patriarca dormia no tapete da porta de entrada da sua casa, e ao ver-me, miou agressivo e ressentido. Ignorei-o altivo e desafiador. Vencedor!
Subi na árvore em frente à casa nova, e exausto, adormeci. Acordei com uma conversa entre os meus donos:
-Acho que ele fugiu querida! Já é quase meio dia e nada dele. Não está em lugar nenhum da casa e não tocou na comida. Vou pegar a moto e dar uma volta pelo bairro para ver se o encontro – disse o homem para a mulher, que concordou. Ele saiu com seu negocio barulhento, que me assusta. Adormeci novamente. Despertei com o barulho forte da moto anunciando o retorno do homem. Observei-os.
-Nada querida! Ele se foi – falou triste o meu dono!
-Foi não, ele já que está de volta. Deve estar com fome – respondeu a mulher. O casal entrou na casa.
Aguardei um tempo, pois gostamos de ser o protagonista dos eventos, e sabia que ao me ver, sendo considerado fugitivo, seria por eles recebido com muito carinho e atenção - a recompensa, os louros da vitória. Somos interesseiros e egocêntricos, é verdade, é da nossa essência agir assim.
Desci da árvore e caminhei calmamente pelo pátio da casa até a garagem, aguardando alguma reação deles.
Então ouvi:
-Querida, ele voltou, o “Pebas”! – gritou alegremente o homem vendo-me pela janela do seu quarto.
Ele veio e acariciou meu corpo, que propositadamente, eu o esticava todo com o rabo em pé. Ronronava feliz de prazer e recompensado.
-Seu safado, por onde andou? É um gato de rua sem vergonha mesmo, não tem jeito né “Pébita” querido? – dizendo-me carinhoso enquanto me afagava.
Convenhamos que chamar-me de “Pébita” é horroroso não é mesmo, mas mais original do que Patriarca, muito esnobe.