A Cama da Minha Mãe

24.09.23

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Ela faria 100 anos hoje. Uma marca memorável, mas que o destino, e talvez ela, não quisessem atingir.

Quando a visitava na casa de saúde, perguntava-me:

-Será que chego aos cem?

-Claro mãe! Faltam três anos só e você chega lá com certeza – respondia-lhe com entusiasmo para que se animasse.

Teimosa e voluntariosa levantava à noite para ir ao banheiro sem chamar as cuidadoras, e frequentemente caía e ficava no chão chamando-as baixinho. Mas não se entregava. Dizia que não faria mais, e novamente ia e caía, ficando, às vezes, por muito tempo no chão frio aguardando alguém ir vê-la.

Ela lutava ainda, pois esse desafio noturno era o que a mantinha viva.

Mas a cada ano, definhava mais. A visão, praticamente cega, e a audição, quase surda. Também, muito cansaço pela fraqueza do seu coração, que lhe causava falta de ar ao falar.

Brincávamos, eu e minha irmã, que a visitava diariamente, pois era a casa de saúde na mesma cidade na qual morava, dizendo-lhe:

-Você escuta o que quer, não é mamãe?- fazendo-a sorrir e responder:

-Audição seletiva! – falava maliciosa.

As quedas se tornaram frequentes e fomos chamados pela diretora para conversarmos sobre a questão da cama. Era a sua cama de anos, feita pelo meu pai e que ela adorava.

-Precisamos trocá-la para uma hospitalar, pois ela é muito larga e está difícil para as enfermeiras cuidarem dela. Mas o principal é impedi-la de se levantar sozinha à noite para ir ao banheiro, pois as quedas estão quase que diárias e ela não aciona as moças para ajudá-la. É teimosa!

Minha irmã e eu ficamos pensando muito, pois sabíamos o quanto ela gostava da cama e que seria difícil convencê-la a trocar.

-Pois é, e agora? Estamos com um dilema não é mana? Ou ela fica com a sua cama querida e corre o risco de cair e não se levantar mais, ou ela vai se decepcionar e se frustrar conosco, pois iremos tirar-lhe a última coisa que a mantêm ligada a sua história de vida, trocando-a.

Ficamos quietos e pensativos por instantes, com a diretora aguardando a decisão. Então, sugeri dizer que iriamos fazer um teste para ver se se adaptaria à cama de hospital. Fomos a ela. Minha irmã pediu que eu falasse, dizendo-me que ela me escutava e aceitava melhor minhas ponderações.

-Mãe, você sabe do problema de se levantar à noite e das suas quedas, o que nos deixa preocupados. Também, a sua cama é muito larga e dificulta o trabalho das enfermeiras. Então, nós queremos sugerir que faça um teste de uma semana na cama nova para ver se se adapta, pode ser? – disse-lhe.

Ela deitada, na sua cama e com olhar fixo no teto, ficou muda por um longo tempo mostrando a sua negação, pois sabia, como nós, que não seria temporário e sim definitivo.

-Então, vamos fazer o teste? – perguntei-lhe novamente.

-Teste? Sim vamos – respondeu baixinho, triste e inconsolada, pois estava se desligando definitivamente do seu mundo ao deixar a sua cama amada. Fizeram a troca.

Depois disso, se entregou. Passava os dias desligada de tudo e de todos, sentada na cadeira de rodas. À noite, não se levantava mais. Perdeu o interesse de viver quando lhe tiramos o desafio de tentar ir ao banheiro sozinha, tendo sempre a companhia da sua cama, pois sabia que voltaria para o aconchego dela.

Faleceu aos 98 anos e até hoje penso se não deveríamos tê-la deixado continuar com a sua amada cama. Quem sabe?

Parabéns mãe querida pelo seu centenário. Hoje, durmo nela.

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 25/09/2023
Reeditado em 25/09/2023
Código do texto: T7893768
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