Aconteceu na Praça
Não havia um só dia em que Rabelo deixasse de se sentar no banco daquela praça com seu jornal dobrado nas mãos e as pernas cruzadas, bafejado pelo frescor da brisa matutina e ao som das garças, dos marrecos que povoavam o lago e dos pássaros sobre sua cabeça em deliciosa harmonia. Os primeiros raios do sol coavam-se por entre os galhos das altas coníferas para se refletir sobre a grama ao redor tornando-a ainda mais luminosa; tudo recendia a paz e serenidade. Mas esse foi um dia especial na vida de Rabelo e, tão certo quanto os dias precedem as noites ele cedo não esqueceria se é que esqueceria de verdade. Havia uma companhia feminina a colorir ainda mais as manhãs de Rabelo e, embora não fosse essa a razão principal da sua constante presença ali, ela lhe dava o que ele precisava nesse momento da vida. Acabara de perder a esposa e o que restou dos seus dias, além do jornal foi a companhia de Isabela.
- Chegou mais cedo do que de costume – ele disse assim que Isabela se aproximou sentando-se ao seu lado.
- Não estou bem. Por pouco não deixo você esperando
- Nunca será uma espera. Você sabe que fiz dessa praça o meu lar e desse banco minha sala de estar. Diga-me o que tem? Se é que posso ser útil.
- Sei que posso contar com o senhor, mas ...
- Não me chame assim! Isso me faz sentir envelhecido; como se já não bastassem os anos levados por Consuelo ...
Essa frase foi seguida de um profundo e sonoro suspiro. Vinha de poucas semanas o finamento e qualquer menção sobre ele era capaz de arrancar abatimento do peito de Rabelo e ele preferiu conter as palavras.
Rabelo, aos 64 anos não aparentava a idade. Agora viúvo, esforçava-se por não se deixar abater, mas reconhecia a quase inutilidade do seu estoicismo. A dor profunda o feria por dentro e já dava alguns sinais de também afetá-lo por fora. Curvaram-se um pouco mais os ombros e a coluna; o sorriso não vinha enfeitar seu rosto ultimamente. Para compensar este estado de espírito havia Isabela; ela sorria por ele, tal sua facilidade para sorrir. A energia, própria de um corpo jovem fulgia em Rabelo uma chama que o animava, apesar de tudo. Contudo, Isabela, neste dia não era aquela menina alegre e jovial de costume.
O movimento da praça dava sinais de que aquele seria um dia movimentado. Das duas entradas laterais afluíam pessoas; como ficava entre duas ruas ela recebia não apenas visitantes permanentes que enchiam seus muitos bancos e seu gramado acolhedor, como era o caso de Rabelo e Isabela, mas também transeuntes apressados que iam de uma ponta a outra por dentro da praça. Isabela era uma dessas visitas diárias, pois trabalhava na bombonière a uma quadra dali. Conhecera Rabelo há coisa de uns quinze dias quando se sentaram um ao lado do outro no banco sem que, nem de uma nem da outra parte houvesse a intenção de iniciar um diálogo. Mas este ocorreu como que empuxado por essa onda misteriosa que os parapsicólogos chamam de telepatia. A viuvez de Rabelo coincidira com a separação de Isabela, dando, à tristeza, oportunidade de confabular com o inconformismo.
- O senhor tem um cigarro?
Foram estas as primeiras palavras de Isabela dirigidas a um senhor até então desconhecido. Ele, que estava como de costume concentrado na leitura do seu jornal matutino, ao erguer da página o olhar e lançá-lo por cima dos óculos para a moça, só então pode reconhecer sua beleza.
O choro tem dessas artimanhas; é um transformador de fisionomias. Lavara durante horas daquela manhã o rosto de Isabela fazendo da profunda amargura que lhe causara o choque da separação, uma beleza agora capaz de quase enfeitiçar o olhar de Rabelo. Ele sorriu com essa interrupção repentina e levou ao mesmo tempo a mão direita até o bolso da camisa e lhe entregou o cigarro. Voltou com a mesma mão ao mesmo bolso, sacou de lá o isqueiro e o acendeu, voltando a guardá-lo.
Afastando do rosto a mecha do cabelo, depois a soltando e expelindo a fumaça a moça esboçou um sorriso encantador para a visão de Rabelo. Mal sabia ele o quanto ela havia chorado e que bálsamo era aquele sorriso. Entre uma frase e outra despretensiosa nasceu uma simpatia mútua que se transformou em amizade ao longo dos dias e das semanas. Rabelo que variava de banco em conformidade com as mudanças solares e com a temperatura do dia, hora preferindo sombras, hora desejoso de se aquecer ao sol passou a ter cativo aquele banco em que conhecera Isabela.
Diante “deste pedido, ela então deixou de lado o ‘senhor’ e passou a tratá-lo apenas como ‘voce’ e ‘Rabelo”, tornando um pouco mais íntima a relação. Mas longe estava dele a intenção de ter algo além de uma pura e desinteressada amizade. Por parte da moça, não passava por sua cabeça qualquer espécie de pensamento nesse sentido. Era um senhor cavalheiro doador de um ouvido meigo, cheio de paciência. Só queriam um do outro a companhia e a amizade. Duas perdas e dois sentimentos, mas em comum a carência, suprida, à luz do dia, tendo como testemunha um local público.
- É claro que pode contar comigo. O que aconteceu?
- Ele me persegue; não aceita a separação.
- Você não o ama. Foi infeliz ao seu lado. O que ele quer mais?
- Não sei. Oito anos de um relacionamento cheio de ciúmes, possessão que só fizeram me desgastar. Consigo ter um pouco de paz desde que nos separamos, mas por outro lado seus telefonemas e mensagens estão me preocupando.
- Você quer dizer que há ameaças?
- Sim, esse é o problema. Desculpe! Por que estou te trazendo os meus problemas. Nossas conversas costumam ser tão agradáveis! Não quero estragar isso.
Dando uma última tragada em seu cigarro, Isabela lançou-o com um peteleco para frente em direção ao lago; o toco ainda em brasa bateu na água e apagou, formando ondas que logo se dissiparam. O leve balouçar da superfície antes calma e quase paralisada fez alguns dos marrecos do lago despertar de um sono letárgico e se movimentar num nado sincronizado para, logo em seguida retornar as suas posições de descanso e indiferença.
- Você precisa fazer alguma coisa; já pensou em denunciá-lo?
- Já o fiz. Não quero ter minha vida atribulada por conta de um homem violento. Tomei minha decisão. Mudo amanhã de cidade e estou aqui mais uma vez para agradecê-lo pelos momentos maravilhosos que me proporcionou; sua companhia foi das mais gratificantes que tive atualmente.
Rabelo tinha, nesse momento uma das mãos de Isabela entre as suas. Ela olhava-o no fundo dos olhos. Esse silêncio perdurou por segundos numa cena digna de ser capturada. Mais uma vez um sorriso iluminou as faces da jovem que, já coradas tornaram-se ainda mais belas. Ele cumprira a sua missão. Valera a pena aquele período pós luto. Voltaria a ser o solitário de antes, mas de coração renovado e feliz.
- Desejo a você toda felicidade do mundo.
Beijou-lhe a testa. Ela se levantou agora cheia de ânimo e sorrindo se despediu. Nunca mais se veriam daquele dia em diante.