A história do Nelson
Ontem foi dia 14 de abril. Está fazendo 12 anos que o Nelson fez aquela besteira enorme, que mudou tanto a sua vida e o deixou em uma enrascada sem proporções definidas. Era uma pessoa decente, pacato, educado, de boa aparência, muito calmo até. Quem o via não imaginaria, jamais, que ele pudesse ter feito aquilo.
Me lembro da primeira fez que eu me encontrei com Nelson, foi na nossa cidade, ou melhor, na cidade onde morávamos havia muitos anos. Mudei para lá ainda jovem, completei os estudos me casei e tive meus filhos nessa boa terra.
O Nelson, também não nascera lá, veio de uma cidade pequena. Quando veio, se sentiu contrariado, pois foi trazido pelos pais e ainda era menor e não havia como se rebelar e voltar para a sua terra natal, onde deixou a Sonia, sua namorada de infância. Também, uma moça bonita daquelas, como descrevia Nelson, além de estarem os dois apaixonados. Mas isso é outra história.
Passou a ser rotina, todos os dias, no mesmo horário, encontrar o Nelson na lanchonete, onde costumávamos tomar o café da manhã. O local era preferido de muitos, pois tinha um pão da casa, que era uma delícia. Muito disputado era um pãozinho tipo de cachorro quente, recheado e levado ao forno com queijo fresco.
Algum tempo depois de nos conhecermos, após o café, saíamos da lanchonete e caminhávamos juntos pela rua abaixo até que ele ia para o seu trabalho e eu para o meu. Tornou-se costumeiro aqueles encontros matinais e a caminha- da, descendo a rua. Enquanto caminhávamos, conversávamos sobre assuntos diversos, nesses momentos era como falarmos de pequenos detalhes de nossas vidas. Alguma coisa sobre a infância, o que me deixava sempre saudoso, da juventude, do primeiro cigarro, primeira namorada e do primeiro porre.
Assim fiquei conhecendo o Nelson.
Era casado, tinha filhos com os quais se dava muito bem, mas com a esposa, era um problema. Acho que por isso que estava sempre sério e com um ar de tristeza presente em seu semblante.
Ficava com pena dele, pois o meu casamento também não ia bem. Meus filhos não eram muito favoráveis à inevitável separação, que ocorreu alguns anos depois.
Nelson também separou-se. Foi morar sozinho em um quarto e sala no centro e deixou a esposa e os filhos na casa que era bem grande, a qual tinha construído com muito carinho, tornando-a bastante confortável. Pensou. Já que não posso aproveitá-la, em paz, deixo para os meus filhos, pelo menos eles terão um pouco de conforto e não vão se queixar muito.
Algum tempo se passou, da lanchonete, passamos a nos encontrar em um bar, próximo de onde eu morava e ele também. Ali tomávamos nosso chope, conversávamos e chorávamos nossas mágoas.
Dois velhos solteiros, separados da família, por causa de desentendimento com as respectivas esposas.
Certo dia o Nelson sumiu. Tinha arranjado uma namorada em uma cidade bem distante. Havia conhecido através da internet, coisa muito natural nos dias de hoje. Eu também comecei a sair com uma antiga conhecida e acabamos ficando juntos por alguns anos.
Já o Nelson, nas idas e vindas, acabou por abandonar a nossa cidade, o seu trabalho e tudo mais para viver com a pessoa com quem estava se dando muito bem.
Algumas vezes ainda nos encontramos, quando vinha vi- sitar os filhos parávamos no velho ponto e de lá passeávamos pela rua falando das novidades. Satisfeito estava e muito. A empolgação era exagerada, pois do jeito que falava, parecia um adolescente descrevendo a primeira namorada.
Por anos, fiquei sem notícias do Nelson. Não aparecia mais, os amigos comuns, também não tinham nenhuma
notícia dele. Não ia mais visitar os filhos, estava sumido mesmo.
Mas um dia, entrando na lanchonete de costume, encontrei o Nelson, parecia abatido, com cara de poucos amigos. Tinha viajado a noite toda e acabara de chegar à cidade. Tomamos café juntos, como nos velhos tempos e logo depois saímos, como de costume descendo rua abaixo, parecia que continuávamos naquele ritmo sem interrupção. O que ficou anos esquecido, aconteceu tão naturalmente como se estivéssemos conversando, no mesmo ponto da rua Direita, todos os dias anteriores. Não notamos a ausência causada pela sua mudança. Falamos sobre tantas coisas, mas, no fundo, fiquei com a impressão de que ele desejava falar de outro assunto. Foi quando perguntei como ia a atual esposa se estava tudo bem e o trabalho novo. Ele, simplesmente falou alguma coisa sem importância, contou alguma coisa sobre o trabalho, sobre a cidade e a residência, deixando o assunto da esposa para outra oportunidade. Notei que se esquivava e imaginei que noutra ocasião, quando estivesse mais seguro, voltaria ao assunto. Mas que tinha algo diferente que o aborrecia, tenho certeza. Conheço o Nelson há muitos anos e já estava acostumado a vê-lo bem ou mal humorado, dependendo do tipo de noite que havia passado em sua casa, nos velhos tempos.
Despedimo-nos. Fui para o meu escritório, como de costume, deixando o amigo ali na rua, pois ele não tinha mais o antigo emprego. Combinamos sair à noite para conversarmos.
Depois das 18 horas, dirigi-me para o antigo bar, um ambiente gostoso, familiar, onde podiam colocar cadeiras na rua, pois não havia trânsito de veículos e naquele horário poucas pessoas transitavam por lá. Ali se encontravam os casais que moravam nas proximidades ou que marcavam encontro ali. Era o ponto preferido e o pessoal dos escritórios, bancos e comércio, que iam saindo do trabalho para conversar com os amigos de outros estabelecimentos ou do próprio local de trabalho e ainda os moradores dos prédios vizinhos e lá faziam o seu “happy hour”.
Ali o chope era muito bem servido e tinha um chope preto que era uma delícia. Naturalmente tinham muitos petiscos que acompanhavam os chopes e isso fazia com que os frequentadores demorassem um pouco mais. Alguns, assim como eu, iam para casa bem tarde.
Acomodei-me na mesa de costume, cuja cadeira preferida ficava encostada na parede e não demorou, apareceu o Nelson, parecia um pouco mais animado. Imaginei que já estivesse refeito da cansativa viagem. Já havia começado a tomar o meu chope e logo chamei o garçom e pedi que lhe trouxesse um. Começamos a falar e lembrar os velhos tempos, nossas velhas confidências, comentei com ele que já não vivia mais com a Celinha e que estava de novo sozinho. Estava, eu, morando no mesmo apartamento de antes e a minha vida nada tinha mudado, até então, pois continuava tomando café na mesma lanchonete, almoçando no mesmo restaurante mineiro e às vezes parava ali para lembrar os velhos tempos e fazer hora para não chegar muito cedo em casa. Pensava: Já que a vida, para mim, é assim, vou vivê-la assim, pelo menos enquanto ela estiver comigo. Um dia vou deixá-la mesmo, e não vou mofar dentro de um apartamento esperando que ela se vá e a morte tome seu lugar.
Nelson, então começou a falar de sua nova vida. Contou- me, que no início era uma beleza. Nem estava acostumado com tanta felicidade. A sua mulher atual só faltava andar com ele no colo, mas todo o resto fazia. Enchia-o de atenção e mimos, havia-o eleito o homem do ano e da vida dela. Davam-se muito bem. Saiam para se divertir, conversavam nos quiosques à beira-mar. Iam ao cinema no shopping, viajavam nos fins de semana. Estava o Nelson muito feliz contando a sua nova vida. Não tinha mais elogios para a esposa. Quando já havia usado todos, sua fisionomia
mudou. Percebi uma lágrima rolando face abaixo, quando ele abriu seu coração e confessou:
– Meu amigo, tudo isso aconteceu, de verdade. Foram anos maravilhosos. Anos que eu nunca havia tido em toda a minha vida, mas, de repente começaram as discussões as quais só foram aumentando e tomando proporções desagradáveis e descontroladas. Havia cobranças e xingamentos, palavras rudes e mais cobranças e mais reclamações que duravam horas. Ao final saiam os dois de cara amarrada cada qual para um canto e iam refletir as besteiras que haviam falado um para o outro. Mais tarde, sempre acontecia alguma coisa que trans- formava aquele clima em algo querendo acontecer e acabavam fazendo as pazes.
Segundo o Nelson essa paz não era muito duradoura. Parecia que tudo havia voltado ao que era, ficavam felizes, saiam e faziam planos e promessas, mas quando menos esperava, alguma coisa detonava aquela bomba de novo e novas discussões, acusações e tudo se repetia. Sua vida naqueles momentos se transformava em um verdadeiro inferno. Queria que tudo voltasse ao que era antes. Pedia, implorava, recebia promessas, fazia promessas, até que em alguns meses ou dias a coisa se repetia e o Nelson muito chateado, não via saída para a situ- ação que se agravava, devido ser ele um estranho na cidade. Não havia feito amigos, não tinha para onde ir e ali ficava amargando sua tristeza e revolta.
Pensava, pensava, passava a noite bebendo cerveja e fu- mando, sem parar e as coisas pioravam dia a dia.
Assim passaram-se alguns anos, sempre a mesma rotina. Brigas, reconciliações, até que os filhos da sua mulher, nessas alturas, já adultos e com aquele ar de autoridade começaram a interferir no relacionamento do Nelson com a sua esposa. As tentativas de reconciliação e retomada da rotina foram ficando mais difíceis e já estava complicado viverem juntos. Nelson até já estava falando em separação, mas havia dificuldades. Como retornar a uma vida que havia deixado para trás há muitos anos. Como recomeçar nessas alturas, se nada mais havia do que tinha antes, sem amigos, sem trabalho, pois tudo havia abando- nado para viver aquele amor que muito prometia. Aquela mulher era feita para ele e o mesmo dizia ela. Acho que a carência de ambos os uniu e com o tempo foram descobrindo que as chatices do casamento apareciam e se revelavam com maior intensidade quanto maior o tempo de convivência.
Bom. Resolveram Nelson e sua esposa que o melhor era a separação. Continuariam amigos e não guardariam mágoas. Mas precisavam de um período de adaptação, até que o Nelson encontrasse outro lugar para morar e pudesse mudar.
Tudo haviam planejado, muitas promessas, muitas mágoas e lágrimas e a decisão ficou formalizada e não haveria retorno, não podiam fraquejar e desejar voltar, mesmo porque agora já não havia mais possibilidade, uma vez que estavam envolvidos os filhos que ela não desejava desagradar.
Enquanto não encontrava outro local para morar, Nelson preparava a sua mudança aos poucos, mas combinou que não mais dormiriam juntos e cada qual procurariam viver sua vida, não sairiam juntos mais, não viajariam mais e assim ficou um clima um pouco mais pesado que o costumeiro.
Nelson diariamente ia dormir chateado, tamanha a mágoa que o amargurava. Só pensava no que havia perdido. No que fora capaz de fazer por aquela mulher. Mas continuava um clima amistoso entre eles e assim apesar de dormirem separados, Nelson continuava cuidando das coisas da família, tomando a frente de tudo. Não importava mais quando a mulher saía só, coisa que antes muito lhe preocupava. Agora começara ela a sair, também à noite com algumas amigas, deixando-o preocupado e imaginando mil coisas. E às vezes conversava com ele mesmo:
– Mas ela tinha prometido não sair com ninguém enquanto eu estivesse morando na mesma casa. Que não me exporia ao ridículo me transformando em marido traído. Será que ela está saindo com outro homem?
Essa era a vida de Nelson naqueles meses que esperava a hora de abandonar aquela casa e se mudar de vez.
Tinha ele o costume de levantar cedo, ir à padaria, buscar o pãozinho quentinho, trazer para casa, fazer o café e deixar tudo pronto para ela quando acordasse. Porém, um dia, resolveu ir até o quarto ver se ela ainda dormia para lhe dizer que o café estava pronto. Foi quando teve uma surpresa desagradável e muito constrangedora. Encontrara, aquela que ainda era sua esposa, pois moravam juntos, embora não dormissem na mesma cama, em companhia de outro homem que dormira na cama que era sua. Naquela cama, naquele ambiente, onde dormira com ela por muitos anos. Ficou totalmente transtornado e acometido de uma fúria descomunal. Gritou, praguejou, chamou-a de tudo que podia e o individuo que até então permanecia neutro, resolveu defender a patroa do Nelson, agravando a situação que era bem complicada.
Nelson não suportou e entraram em luta corporal, terminando mal, naturalmente, aquela contenda entre os rivais. Nelson pegou algum objeto e depois de ter sido agredido com um soco no rosto atingiu a cabeça do homem com quem brigava e o matou.
Quando viu o que acontecera, ficou desesperado e saiu em desabalada carreira, entrou no carro e desapareceu.
Algum tempo depois, passado o flagrante, voltou, apresentou-se, acompanhado do seu advogado, ao Delegado fez seu depoimento, pagou a fiança arbitrada pela autoridade e foi cuidar da sua vida, e arranjar um lugar para ficar.
Não descreveu em minúcias como havia feito isso, mas estava aguardando audiência onde seria sentenciado ou não. Já que o homem a quem agredira não havia morrido. E ele alegado legitima defesa, além de ser réu primário. Acreditava que sua pena não passasse de dois anos de prisão, o que seria convertido em pena alternativa, segundo havia lhe informado seu advogado.
Assim ficou o Nelson tentando fazer o possível para sobreviver, procurando fazer tudo sozinho, preferindo que seus filhos não participassem. Mesmo porque, segundo ele, quando saiu, não houve participação dos filhos que ficaram neutros. Nada mais justo que adotassem, agora, a mesma atitude.
Depois dessa nossa conversa, fiquei surpreso e meio ator- doado com o relato. Mas alguns meses depois fiquei sabendo que tudo havia sido resolvido e que Nelson continuava trabalhando, morando sozinho e com o firme propósito de jamais ter uma outra mulher em toda a vida que lhe restasse. Assim pensei, acho melhor seguir seu exemplo, pois a vida já é muito difícil e complicada para ficarmos procurando outros tipos de dificuldades para vivê-la. É tão simples viver só que não vale a pena buscar complicadores que só podem atrapalhar a vida que nos resta.
Assim estou até hoje.
Só!
Dono de minhas decisões, faço tudo que desejo quando e onde tiver vontade e ninguém me pergunta o que, nem porque.
Sou feliz.