NOITE DE VERÃO
NOITE DE VERÃO
“Milénios de matanças, de guerra, de fome, de inundações, de tortura, de se ser enterrado vivo, de se ser esfolado vivo, de trabalhar até à morte, mas nunca havia mortes suficientes para aliviar a terra do seu fardo de gente.”
John Updike in “As viúvas de Eastwick”
Ao sabor do vento ou do relâmpago.Choveu a potes.Ele mal dormiu durante a noite, acossado de procupações e sombras.
Mas lá acordou de um sono breve, urinou para o recipiente das análises e foi, apressado , em jejum, para o laboratório das vampiras para lhe recolherem o sangue.Tinha consulta na semana seguinte.
O Zé tinha-lhe dito na antevéspera.
- Tenho terror de descobrir que já não estou dentro do prazo de validade!
- Como os yogurtes?
E no outro dia tinha-se espalhado, espectacularmente, numa tal feira de artesanato e fracturara a omoplata, esfolara o rosto e ficara de rastos…e imobilizado durante mais de um mês.
Mas de trás, a valquíria Dona Cândida ostentava uma silhueta invejável e um penteado esbelto de actriz dos anos dourados de Hollywood. Mas, depois, voltou-se lentamente e sorriu com uma fronha engelhada,rugas profundas à volta dos olhos, o baton esborratado, nos cantos da boca e a seringa na mão:
- Trouxe a urina?Arregace-se. Na esquerda ou na direita?
Doeu-lhe. O cartão do seguro não funcionava, as funcionárias da recepção eram daquelas que afivelavam um sorriso imbecil e que estavam formatadas num raciocínio quadrado.Teve que pagar a conta da vampira na totalidade.Negócios da Medicina num país de pretenciosos e enganados.
- O Senhor tem a aplicação?
- Aplicações?Tenho muitas…Nem queira saber – desabafou ele, irritado.
- Tira a fotografia e manda para reembolso.Nós, aqui, enviamos os resultados por email.
Ele sentiu aquela náusea e vontade quase assassina de pegar numa prancha e zurzi-las mas, conteve-se e arrepanhou-se todo, num esgar de sensatez e prudência
- Muito Obrigado.Bom Dia!
Nesse dia, ele não quis ver nem ouvir ninguém.Vagueou pela casa às escuras, com os estores para baixo como a Mulher gostava, uma espécie de palácio da rata cega, impôs-se ao silêncio,sentiu desejo de tapar a cabeça para não ouvir a Lucinda, a colaboradora das tardes, a bater com os pratos na cozinha mas, antes, ligou ao João:
- Choveu toda a manhã mas agora está um calor abrasador.Vamos jantar, quero beber uns copos, olvidar,por favor, leva-me para a má vida…
- Bora, vou ver se o Jorge também alinha.Bairro Alto com eles, podemos muito bem ir ao Maré Alta.
- Bem…a esse acho que já não vou há trinta anos.Vou tomar um comprimido para a tensão não vá ter uma comoção cardíaca.
-Já agora não te esqueças dos comprimidos azuis.Para o sexo,Nunca se sabe!
E Rui informa que vai a um jantar de amigos.
O Cônjuge aprova e deseja-lhe um bom jantar.Provavelmente está ansiosa por vê-lo pelas costas.
Ele veste e despe uma t-shirt, um polo e uma camisa preta, azeviche.Ganha o negro.Penteia a franja para frente para parecer mais novo, olha-se ao espelho e solta um suspiro:
- Ai, agora sim compreendo a Jane quando se vê ao espelho e grita ao enxergar a realidade e descobre uma bruxa horrenda em vez de uma menina de caracóis louros, naquele filme de terror com a Bette Davis e a Joan Crawford.
“Whatever happened to…” Master Rui.
Sai para a rua com o bairro infestado de imigrantes jovens, a chinelar, dengosos com telemóveis caros e esquemas duvidosos.
O táxi chega com o chauffeur a arfar.O trânsito não anda.Lisboa no seu melhor.Suja, entupida e abarrotar de gente.O condutor pragueja nas ultrapassagens, quando buzina e nos intervalos ou seja, em permanência (“Fonix!).
Chegam ao largo reduzido, frente ao famoso café com uma multidão turística a passarinhar, incansável, de trás para a frente, quase atropelando-se.
Ele paga e sai, tonto com o ar quente.o telefone toca.É o João.
- Estou sentado na esplanada da Bénard ,á tua espera, enquanto aprecio rabos.
Ele chega ao pé do amigo que se levanta e abraça:
- Estou a beberricar um on the rocks.Whisky.O que é que tomas?O preto tem um traseiro delicioso e a empregada umas mamas portentosas.
- Calma.Vou pedir um porto branco sêco com gelo e uma rodela de limão.A noite ainda é uma criança.
O João e o Jorge já contam como ele décadas no conta quilómetros.Casaram-se ambos com doutoras ricas e vivem num desafogo maravilhoso e confortável, viajam pelo mundo como se fossem e viessem até à Costa.Rui pensa que não sai desde 2012 mas que se farta de viajar à volta do seu próprio quarto.
Vão ter com o Jorge a um barzinho escuso no bairro histórico, percorrem as ruas apinhadas de uma multidão faminta de divertimento e maluqueira, eles acenam e cumprimentam dezenas de donos de bares e restaurantes pelo caminho e entram na baiúca ao anoitecer.Marca trinta e dois graus de temperatura.
A conversa flui, as gargalhadas surgem e ele sente-se um extraterrestre num environment conhecido.
Os seus companheiros já apresentam sinais de uma leve embriaguez no horizonte.Convidam o dono para se sentar à mesa e jantar com eles.O homem tem a lucidez de recusar polidamente e fala-lhes da sua próxima viagem à Turquia:
- Ah os banhos e as massagens turcas com muito sabão e tareia! – recorda Jorge com ar connaisseur.
Reviver um passado que foi e teve que ser trocado por uma vida alinhada e medíocre.
- Não deites mais, obrigado.Já bebi o suficiente.
Vão mostrar-lhe uma nova capelinha, deambulam pelas ruas apinhadas.O Jorge confessa:
- Oxalá me apalpem.Estou a precisar tanto de sentir o calor humano!
Há um empregado cheio de aneis e unhas pintadas de escuro que lhes serve uma mistela ótima.
Ele sente uma vaga vontade de vomitar mas ri,por dentro.A vida era feita de nadas.De dias e noites insignificantes.De pobres diabos, todos eles e a humanidade, em geral.Sem significado.Para quem uma noite de verão, uns copos,um saco de gargalhadas e uma fugaz alegria, fosse o que fosse, davam uma ilusão fantástica.