UM DIA DE (RO)TINA(S)

 

 

Bairro Campo Comprido, numa quinta-feira do último ano pandêmico, antes das 07h00.

 

— Senhora, não acha perigoso fazer isto? Tirar as pequenas de casa? E o "Coronga"?

Tina acolhe a manifestação de censura do motorista de aplicativo com um sorriso educado, feito mais com os olhos. É a oitava conversa desse tipo só no último mês.

Sabe que eles não dizem por mal; a preocupação é legítima. As informações sobre todos os riscos, depois da chegada da pandemia, ainda são confusas. Isso, contudo, não muda a necessidade de levar as meninas até a casa da mãe para poder ir para o seu trabalho. E do pouco que entendeu desse vírus que mudou o mundo, o deslocamento diário dos mais velhos é opção mais arriscada do que o dos mais novos. Então, nada de fazer a vovó sair de casa.

São duas filhas pequenas; o homem ao volante falou certo. Pequenas demais pra ficarem sozinhas. Duas filhas e um só emprego; uma só renda, para dar conta delas. De tudo.

Na primeira vez que essa crítica foi ouvida, ela até argumentou sobre cada um desses pontos. Depois foi cansando e percebendo não fazer diferença: quem tivesse o ímpeto de falar, abriria a boca sob a máscara e deitaria a pregação da mesma forma.

Quase como um autômato, a trabalhadora suspira discreta e emite duas palavras através do tecido protetor:

— É necessário.

Hoje, essa expressão é a única resposta dada pela morena esguia, enquanto mantém o sorriso educado de uma Mona Lisa contemporânea. Impressionante, aliás, como as pessoas aprenderam a fazer os outros perceberem suas reações e emoções, mesmo estando as bocas ocultas a maior parte do tempo.

Uma ensaiada "Tina simpática" dá ao motorista a impressão de estar atenta aos seus comentários seguintes. Mas a jovem mãe não faz a menor ideia do conteúdo do discurso balbuciado por ele ao longo do trajeto. Prefere ocupar o tempo pensando na sua longa agenda para hoje.

Alguns anos atrás, seus dias eram bem cheios também. Mas uma parte deles podia ser mais sua. E havia uma expectativa maior de partilha do restante dos afazeres. Afinal, já contava com a presença de "um certo alguém", como diz a velha canção. Ou, ao menos, pensava contar.

Todavia, o tempo tratou de lembrá-la: nem tudo transcorre como pretendemos. Pessoas, às vezes, desapontam. E prometem melhorar, com intenções legítimas; porém sem o repertório para ter êxito. É quando sobrevém a decepção. Às vezes.

O enredo do filme de sua vida passa a ter reviravoltas. Luta mais árdua entra em cena. Mais esforços; mais abnegação. Alguns sonhos são arquivados. Propósitos, não. Estes até aumentam, acrescentando dois, pelo menos: Leila e Lúcia.

Foi um susto quando veio a segunda gravidez; e outro maior quando, já separada, viu tudo ficar por sua conta: a jornada com as crianças; a busca por recursos; as idas aos médicos; os problemas da casa; e, claro, as respostas criativas aos mil e um "por quês". Mas aqueles dois sorrisos foram crescendo com seus desafios. Uma compensação inesperada e fabulosa.

O apoio da avó das crianças tem feito toda a diferença. E enquanto não há liberação para aulas presenciais nas escolas, é mais do que isso. É a opção para prosseguir lutando. A única.

— Chegamos, mamãe! Tô vendo a casa da vó!

Leila, a mais espoleta, não perde a oportunidade de fazer alguma fala. Tina sorri, dessa vez de forma ampla e genuína. Corrida concluída. Carro liberado. As meninas disparam portão adentro.

— Devagar, mocinhas! Não quero ninguém tropeçando e ralando o joelho assim cedo!

A fala, tão própria de mãe, é recebida com risos endiabrados. Mas sempre tem seu efeito. Elas diminuem o passo, mesmo sem parar a disputa. Vera abre a porta de sua casa, acolhendo as netas com aquele sorriso que as pessoas só aprendem a fazer depois de virar avós.

— Oi, Tina! Quer entrar um pouquinho?

— Obrigada, mãe! Mas hoje tenho que correr... Tem muito trabalho me esperando!

— "Hoje...". Você corre todo o santo dia, filha. Sei que precisa, mas assim que der...

— ... preciso fazer alguma coisa? — Completa Tina, com alguma ironia.

— Filha, eu só...

— Eu sei, mãe. Você só quer o meu melhor. Acha que eu preciso cuidar um pouco mais de mim. E tem razão; tem toda a razão... Mas me lembra disso na hora errada. Quando não tenho essa opção.

Vera escuta sua filha com o coração dolorido. Não pode negar o que acaba de ser dito. Não há uma opção. Não ainda. Mas não pode deixar de se preocupar. É mãe dela.

Talvez, quando as coisas se resolverem por completo no processo judicial. Quando não houver mais ninguém podendo apontar o dedo pra Tina, sugerindo haver limites para cuidar sozinha de suas filhas. Quando a certeza da guarda e do bem-estar das meninas estiver assegurada até a enésima potência. Aí, quem sabe, a fala de Vera apareça sem a carga de cobrança. Quem sabe...

Ela também gostaria de alertar Tina sobre como seus olhos são falantes: nem precisaria ter retrucado tanto, pois o recado dado já estava em sua expressão. Mas sabe não ser ocasião para tantos "apontamentos". Vera entende o "discurso franco" nos olhos de sua filha, como marca de quem é transparente e tem intenções sinceras. Seu receio é ver essa "linguagem" gerar algum mal-entendido com outras pessoas, lançando-a em saias justas. Mas reza bastante e confia no bom senso recorrente, quase sempre percebido nela.

Desejos de bom-dia mútuos encerram o encontro. Tina vai para o ponto de ônibus. Embarque e permanência seguem-se de forma protocolar. Como, por certo, ocorrerá no desembarque. Mas o tempo do trajeto é dedicado à revisão de tudo o que há para fazer no dia. É um bom trajeto até o bairro Cabral.

Ela gosta de abraçar causas. E encontra algumas em seu trabalho, uma seguradora, administrando todos os tipos de produtos decorrentes desse ramo, incluindo coberturas de qualquer tipo de riscos, pagamentos para amparar sinistros e até alguns complementos previdenciários. Sabe ser uma prestação de serviço relevante e útil para as pessoas, embora só esteja mantendo esse emprego por causa das filhas, no momento. Para Leila e Lúcia, é melhor ela estar atuando numa empresa, com contrato fixo e carteira assinada. E, ao mesmo tempo, seria melhor se não estivesse.

— É... sou a Tina dos paradoxos...

Os passageiros não escutam seu murmúrio, diluído num mar de sons parecidos e indistintos. Ônibus são uma coleção deles. A maioria das pessoas faz esse mesmo exercício quando está num: usa o trajeto para conversar consigo mesma. Pensar sobre o passado e agir pelo presente. Vez ou outra, até sonhar com o futuro.

Viagem concluída, Tina deixa o Terminal do Cabral e caminha 15 minutos até sua empresa. Muitas tarefas a esperam por lá. Amigos, também. E colegas de todo o tipo: os que parecem apoiá-la; os que sempre dão a impressão de estar avaliando a todos; os indecifráveis. Há também um pequeno grupo sobre o qual nada se dá pra dizer, exceto parecerem estar por ali e, ao mesmo tempo, não estar.

Um quadro normal, próprio de toda organização. Rever esse “ecossistema”, todas as manhãs, não a deixa esquecer das aulas de administração do professor Loyola, citando com frequência a reflexão que ficou para sua vida: “As organizações só se movem por um motivo: sobrevivência. Sonhos, paixões, nobrezas e mesquinharias, são trazidas pelos humanos que as frequentam.”

Mas ela adoraria ver tudo diferente, vez ou outra. Não que ainda se permita ficar cheia de expectativas e depois se desapontar. Suas perambulações pelo mundo a ajudaram a desenvolver defesas, como uma armadura, para as decepções não darem mais conta de derrubar o seu dia. Ela precisa poupar seu gás para os desafios certos. Por ela e pelas meninas. Mesmo assim, ainda se permite sonhar, dia sim, dia não.

Quem consegue ser um pouquinho mais observador, sabe: seu silêncio é barulhento. Os olhos, com frequência e eloquência, costumam contar tudo nos breves momentos de distração que ela ainda se permite. Olhos falantes; tagarelas, mesmo. São aliados fiéis de seu âmago. Mas, como crianças numa cerimônia, às vezes se esquecem de posar de anjinhos. E mostram suas garras afiadas.

 

08h10

— Tina, bom dia!

O cumprimento de Laura desperta a recém-chegada de suas reflexões.

— Oh... Bom dia, Laura! Como você está?

— Tudo bem comigo. E contigo?

— Tudo bem, também!

— Que bom! Hã...

Ver a colega emendar um "hã", morder os lábios e olhar pro lado, alerta Tina: vem algum imprevisto aí...

— Você vai precisar ficar no atendimento hoje, durante o expediente inteiro...

A frase é proferida com mais caras e bocas. Sua perplexidade se duplica. Uma primeira vez, porque esperava utilizar o dia de hoje para atualizar processos e arquivos sob seus cuidados; já que sabe haver outros integrantes da equipe habilitados para se alternar no guichê.

E uma segunda vez, porque não compreende as caretas esboçadas quando se fala em ir para a recepção. Do modo como vê as coisas, aquele é um ponto importante e privilegiado do trabalho, pois é onde se percebe a relação concreta desenvolvida, de fato, entre o público e a empresa. Mesmo às vezes sendo extenuante, é um ponto do negócio que não poderia ser abominado por quem quer fazer carreira numa organização. No entanto, sobram colegas tratando aquela atividade como os vampiros tratam o alho: fugindo por toda a eternidade.

Mas a ligeira retração na face de Laura mostra que, de novo, os olhos de Tina falaram demais. Então ela disfarça, sorri como no quadro de Da Vinci, reúne seu material de trabalho, amarra o “faceshield” na altura da testa, posiciona a máscara respiratória, e segue para os guichês.

A sala de espera não está cheia. Não tem estado, desde o começo da pandemia. Mas há um número razoável de pessoas aguardando. Com paciência e muita atenção, a mulher incumbida de passar o dia no atendimento presencial vai acolhendo, ouvindo e encaminhando as pessoas.

Num dado momento, então, chega o "seo" Gomes. Cliente muito antigo da empresa, com histórico de oscilações profundas de autoestima e humor. Em seus dias mais agudos, ele costuma agir como o rei do mundo, o sabe-tudo, despejando arrogância pelos poros em todos os incumbidos de atendê-lo. Entre os colegas dela, há um dito: "se o tormento do inferno for enviado à Terra, seu emissário irá se chamar Gomes". Para muitos, encontrá-lo significa azedar a semana. Não para Tina.

Por certo, ela também se magoa com impropérios gratuitos de quem esconde seus medos na prepotência. Mas aprendeu a não deixar isso roubar pedaços do seu coração. Há outras prioridades para levar sua paz e sua energia. Se algo vai enfraquecê-la, consumi-la, precisa ser pelo único motivo aceitável hoje: as pequenas.

— Bom dia, sr. Gomes. Tudo bem?

— Bom dia? Hah! Só se for pra você! Minha conta está no vermelho por causa dessa empresinha de meia tigela! Vocês não conseguem fazer nada direito mesmo! Acha que eu estaria aqui, pessoalmente, se estivesse tudo bem?

"Acho; pois o senhor não vem aqui pela qualidade do serviço. Vem por dores e vazios na sua existência, que não encontram um jeito de ser aplacados, já que o senhor tem medo de olhar pra eles de frente." A resposta, em sua mente, para o homem irritante, é esta. A verbalizada, não.

— Talvez eu possa ajudá-lo. Por que não me conta o que ocorre enquanto eu lhe sirvo um chá?

Surpreso e embaraçado, por não ter ouvido o tradicional recuo intimidado, costumeiro de outros atendentes, Gomes senta-se e respira de forma ruidosa, enquanto uma palavra ressoa no labirinto do seu ego: "ajudá-lo". Quem ela é para oferecer-lhe ajuda? E um chazinho "metido a besta"?

Por outro lado, dá-se conta de há muito tempo não escutar nada que sugira alguém se importar com ele. Acredita mesmo não haver mais quem o faça. Acidental ou não, a fala de Tina cria a hipótese de estar enganado. Neste ligeiro abalo e antes de suas defesas internas o fazerem voltar ao seu estilo intragável, o homem apresenta sua demanda de forma quase polida: atraso no recebimento de um seguro.

— Entendi. Vamos olhar como está o seu cadastro e pensar num jeito do senhor se prevenir no futuro, monitorando as coisas do seu celular. Que tal? Posso lhe mostrar como fazer isso.

A mulher registra, pesquisa em sistema e soluciona o suposto impasse: informação incompleta. Em seguida, oferece-se para auxiliá-lo a baixar um aplicativo no celular e o ensina a navegar nas telas para localizar seus benefícios e identificar eventuais pendências de cadastro, bem como o que fazer para resolvê-las. Explica tudo com calma, sempre com voz mansa e despregada da costumeira aura de atritos que acompanha Gomes. Depois, assessora uma primeira operação autônoma de atualização de dados feita pelo próprio cliente. Então o inesperado ocorre: o rosto sempre franzido do homem impaciente mostra-se suavizado. E um tímido, quase sussurrante, “obrigado” pode ser notado saindo de sua boca.

Uma pessoa agradecer um bom atendimento deveria ser cena comum, indistinta na paisagem de uma empresa que lida com o público. Mas, em se tratando de “seo” Gomes, é um fenômeno tão pouco frequente quanto o da Lua de Sangue.

Depois de ver o cliente sair, uma insólita indagação aparece na mente da funcionária, ameaçando ofuscar a alegria do êxito na condução do caso: “sabiam que ele viria e por isso a repentina mudança de escala?”. Mas é uma pergunta retórica. Não deseja procurar a resposta. Poderia trazer um desapontamento maior. E não há razão para isso, afinal, o atendimento se concluiu e foi satisfatório. Na próxima vez, é provável, aquele homem volte com a mesma e habitual agressividade, sua marca registrada. Mas hoje foi diferente. E para tanto, bastou a Tina ser Tina.

     — "O que é ser, de fato, a Tina?" — pergunta uma voz só ouvida por ela.

Nessas horas, seus pensamentos agitam o banquete de todas as suas Tinas interiores. Isso ora a diverte, ora a incomoda. Pois acaba puxando para o presente seu túnel do tempo particular, revivendo os muitos universos sonhados, desejados; às vezes até iniciados, mas que não puderam prosperar por tantas curvas do caminho; tantas crateras; tantos cruzamentos perigosos; tanto trânsito congestionado na longa estrada de sua própria aventura de existir.

"Ser Tina" inclui, então, viver na alma cada possibilidade sonhada: atriz; dançarina; atleta; gestora; mulher apaixonada; mãe; modelo; cantora; líder; viajante; poetisa; e mais uma centena de tipos. Incorporar cada identidade esboçada nas aspirações da criança, da adolescente, da jovem e da mulher; e aceitar que a maioria desses mundos jamais se transfira para o corpo. Ou, se e quando algum o fizer, isso ocorra apenas por breves estágios. Talvez haja um limite tênue, neste caso, entre aceitar e decidir.

"E não é um pouco assim com todo mundo? Ou alguém achou a rodovia mágica de viver todos os seus mundos possíveis sem pagar um preço inalcançável?”

A voz interna da Tina filósofa costuma aparecer nessas horas, e isso impede as outras de esmorecer. Aquela que mantém todas coesas, enquanto são carregados os muitos pianos trazidos por cada dia.

“Não há escolha sem renúncia. E viver algo por breve período é diferente de não viver. As estradas são pavimentadas com pedras de tamanhos diferentes; e a junção de todas elas é o que torna o trajeto firme.”  O discurso do velho tio Hermes, nessas horas, costuma vir à tona, por coincidir com as crenças de muitas de suas Tinas, da intuitiva à filósofa, passando pela sonhadora. E por tornar essas crenças traduzíveis.

Hermes foi mais do que um tio em sua adolescência; cumpriu muito bem as funções de conselheiro e amigo, também. Amigos: sempre é importante tê-los. E mais ainda saber identificá-los.

Este é um debate infindável para seus "eus": saber quando retirar sua prudente armadura; quando mantê-la; ou quando agregar a ela escudo e espada em punho, para assegurar que sua energia se poupe para as prioridades. Uma equação difícil, pois, no que depender da Tina bélica, ninguém se aproximará demais, mesmo quando um armistício possa soar como benéfico e de baixíssimo risco. Há cicatrizes ainda doloridas; então a fala mantida — com expressivo apoio da Tina maternal — é "cautela, como canja de galinha, nunca é demais e mal não faz".

O expediente prossegue na recepção, com aparentes abrandamentos de reflexões e demandas. Por coincidências do universo, também não ocorrem nenhum daqueles telefonemas particulares, habituados a roubar a poesia de seus olhos, deixando impossível a estes esconder quando Tina veste o manto cinza outra vez.

 

12h45

Chega o almoço e Emília, uma colega, cobre o guichê enquanto ela faz sua pausa. Há um espaço na empresa para os que trazem refeições de casa. Após aquecer seu prato e sentar-se com a amiga Rachel — colega de trabalho mais longeva —, uma conversa leve tem lugar. Ambas querem repor energia e não falar nada muito sério. Ao menos é o propósito inicial. Pois entre pessoas que trabalham junto, nem sempre é simples evitar questões "da firma" em festas, baladas ou “happy hours”, quando se encontram. Como assegurar, então, que, numa refeição dentro do expediente e do prédio, isso não aconteça?

Reconheça-se: elas tentam. Mas é inevitável começar com um tema corporativo trágico. Daqueles que precisa ser sussurrado:

— Soube quem está aí hoje? A Sofia. Coitada...

A menção do nome não evoca as melhores lembranças. Na verdade, desperta até algum dissabor.

— O que houve com ela?

— Bom, aquela empresa concorrente para a qual ela foi... tinha um problemão lá dentro!

— Como assim, Rachel?

— O supervisor dela... era daquele tipo, sabe?

— Está se referindo a assédio...?

— ...sexual. Isso mesmo!

Tina havia pensando em assédio moral. Está horrorizada com a informação. E compadecida da ex-colega: Sofia também cria um filho sozinha.

Ela lembra que a relação entre as duas não foi das melhores. A ex-colega, com seu perfil “workaholic”, sempre demonstrara impaciência com quem possuía ritmo diferente, ou demonstrava fragilidade em algum instante. Isso a incluíra, muitas vezes. Em especial nos dias em que sua situação familiar a deixara mais abatida e menos concentrada. Por duas ocasiões, inclusive, a impaciência se transformara em palavras rudes em público. Uma arena de combate se estabelecera, desde então, entre ambas.

 Mas essa mágoa perde sua primazia, diante da menção a um dos fantasmas mais horrendos do mundo corporativo, em especial para as mulheres.

— Meu Deus! E como ela está?

— Bom... ela quase optou por se calar, preocupada com o emprego e com o filho. Mas como o tormento não tinha fim, acabou achando coragem e forças para denunciá-lo.

— Nossa! Nem imagino como ela esteja. Eis um pesadelo que espero nunca conhecer, embora saiba que pode estar nos esperando em qualquer ponto do caminho.  — Comenta Tina, entre o choque e a melancolia.

— É... até já foi pior, no passado. Mas ainda é uma barra lidar com esse lado sombrio do mundo do trabalho. Veja o desdobramento, neste caso: o supervisor foi demitido; mas ela sentiu-se estigmatizada pelos colegas e acabou por pedir as contas.

— Que horror! E agora?

— Bom... é por isso que ela está aqui: veio falar com nossos administradores, para saber se há vaga; e se eles a aceitariam de volta.

A mãe de Leila e Lúcia sente seus olhos aguarem. Mesmo não gostando dela, coloca-se no lugar de Sofia. Como sair desse tipo de labirinto, sem perder uma parte da paz? Rachel continua:

— Estou esperançosa de vê-la aceita de volta. Sempre foi tida como excelente profissional, por todos. Aliás, não sei se, no lugar dela, eu teria arriscado sair daqui.  — Comenta Rachel.

Tina tem o impulso de reagir ao último comentário, por solidariedade e empatia com a situação de “mãe solo” de Sofia. O salário e o plano de saúde ofertados, na outra empresa, eram bem melhores. Qual pessoa com filhos não se balançaria por isso? Mas lembra que sua colega de almoço não lida com a mesma realidade. Então, cala-se. Mas esquece de emudecer os olhos. E estes censuram o comentário da colega, que percebe e faz menção de se desculpar.

— Tá tudo bem. Não é simples, mesmo, entender as inquietações de outra pessoa e, a partir daí, saber se cabe julgar, ou se é melhor só silenciar. — Pondera Tina.

— Enfim... as empresas ainda têm muito a aprender sobre como agir com assédios. Como impedir que aconteçam. E como lidar com o “dia seguinte”.

Ao ouvir o pensamento de Rachel, a mãe de Leila e Lúcia faz meia concordância, apenas. E contrapõe:

— As pessoas. As pessoas têm muito a aprender. Pois serão elas a mudar isso nas empresas, que apenas responderão às nossas ações. Mas nós... nós precisamos querer.

— Você tem razão, acho... Mas vamos passar pra assunto? Este mexe com muitas coisas ruins dentro de mim.

— Concordo.

Segue-se um silêncio quase harmonioso, enquanto concentram-se em seus pratos e retomam a refeição.

Quando voltam a falar, os temas a ocupar a mesa são bem mais brandos. Ou ao menos assim parecem. Rachel fala de suas últimas peripécias amorosas e pergunta a Tina por que nunca a vê falando sobre isso.

Num sorriso ambíguo, ligeiro e com luz reduzida, a mãe de Leila e Lúcia murmura, para si mesma, citando um trecho de "What's love got to do with it", de outra Tina, a Turner:

— Romance? "Quem precisa de um coração, quando este pode ser partido?"

Mas Rachel acaba por ouvir. E, percebendo alguma falta de leveza na fala, finge ignorar, e muda a narrativa. Resolve comentar a variedade de nomes dos membros da equipe e as possíveis histórias por trás deles. E após compartilhar seu conhecimento sobre algumas dessas curiosidades, pergunta à amiga:

— Ei! Sabe o que eu penso de vez em quando? Que aquele cliente, o "seo" Gomes, deve se chamar assim por conta da Família Addams. Até que tem a ver, né?

As duas riem. Mas Tina logo para.

— Coitado! É um homem triste, na verdade. Merece um pouco da nossa tolerância e paciência.

A careta de Rachel é um comentário ruidoso. Mas a mãe de Leila e Lúcia não recua:

— Eu sei: nem sempre é fácil. Mas algo me diz que a história dele é um poço de ressentimentos e frustrações. Como se tivesse sonhado com muitas coisas e sentisse não ter realizado nenhuma. Precisa, agora, se esconder numa falsa autoridade pra não se sentir um "nada".

— Ô, amiga... você é tão lindinha, nessa mistura de psicóloga e anjo... sempre vendo um jeito de compreender as pessoas...

— Capaz! Só faço o que gostaria que fizessem mais por mim: compreender os limites, os dias ruins; mas também os esforços e os méritos.

— Eu te entendo, acho. Mas penso haver os que “observam e compreendem Tina e sua ro-tina”. Sempre há. — Pondera Rachel, tentando dar um pouco de humor ao tom, após perceber nova melancolia em sua companhia de almoço.

— Bom... Não importa se há ou não. Sei o que tenho que fazer e sei por que faço. E vou seguir firme, pois há quem precise que eu siga.

Silêncio. Como sua colega de trabalho fica sem saber o que dizer, a Tina bem-humorada entra em cena.

— Ah! E ele não pode ser o cara da Família Addams, não. Porque aquele é Gomez, com “z”...

As duas já estão para dar uma risada e encerrar o almoço, quando o ruído de sapatos de salto as faz olhar para a porta: um dos administradores – Paulo - adentra o local acompanhado de Sofia. Esta aparece com vestimenta impecável, mas os olhos vermelhos.

— Olá, “ladies”. Lembram-se da Sofia, né?

A resposta se faz com trocas de olhares e um sorriso quase espontâneo de Rachel, correspondido na mesma reverência pela visitante. Quanto à outra integrante da mesa, um menear de cabeça e uma expressão reverente são tudo o que se pode perceber, além de uma fala quase murmurada, que parece conter um “oi”.

Sofia entende todo o histórico daquele murmúrio. Seus olhos denunciam um discreto engolir em seco, enquanto faz uma reverência educada à ex e, talvez, futura colega desafeta. Em seguida, senta-se com o homem engravatado junta a uma das mesas. Café é servido e uma breve conversa tem início. Pelas expressões de ambos, parece ser a continuação de algum assunto. Tina fica a se perguntar se Paulo optou por falar no café, para evitar o rito de ficar a portas fechadas com ela em seu gabinete, após saber do ocorrido. Ou se, num gesto de empatia, levou-a para a “cantina da firma”, sabendo ser ambiente mais propício para as pessoas desaguarem suas emoções, deixando no corredor algumas das máscaras institucionais. Prefere ficar com a segunda opção e concluir seu almoço.

Alguns minutos depois, Rachel faz mais uma pergunta:

— Ouvi dizer que você teve que atender o “seo” Gomes hoje. Verdade?

— Ué... o comentário sobre ele não foi por causa disso? Ninguém te contou que o Gomes viria?

— Não. E, a meu ver, nem sabiam. Só o esperavam para a próxima semana.

A informação faz a mulher dissipar uma de suas inquietações de mais cedo. Uma, apenas. O cliente difícil não fora, afinal, o motivo da mudança de escala.

— O atendimento foi tranquilo. Depois de alguns resmungos dele, claro.

— Sério? Meu Deus! Você é uma fada, mesmo!

Em resposta a Rachel, ela expressa mais um de seus "capaz!", sorrindo com alguma leveza e comedimento. É bom conseguir que sua amiga saiba de seu pequeno êxito sem precisar anunciar o feito. Jamais o faria. A Tina exigente consideraria vaidade gratuita. E, do modo como vê, nem acha que os outros reverenciariam isto.

Almoço encerrado. As amigas ajeitam a mesa da copa para os próximos a vir. Rachel se despede e sai.

Tina, observando que o administrador sai da cantina – talvez para ir ao banheiro -respira fundo, suspira e decide se aproximar de Sofia. Esta, por sua vez, a encara com olhos encharcados.

A mãe de Leila e Lúcia retribui, olhando para a outra mãe. Sem sorrisos, mas com genuína empatia. Lembra das histórias ruins entre as duas, mas lembra também das mesmas barreiras que ambas encontram em suas jornadas, numa metrópole cheia de faces que cobram e nem sempre com mãos ofertando na mesma proporção. Decide, então fazer diferente: estende a sua, para cumprimentar a suposta “adversária”.

Sofia desata a chorar e se ergue, iniciando um pedido de desculpas. Fazendo um gesto sereno com as mãos, Tina a interrompe.

— Podemos falar disso outro dia.

Em seguida, entrega-lhe duas mensagens. A primeira, em forma de abraço. A segunda, uma fala ao seu emocionado ouvido:

— Hoje, só quero que saiba que estou torcendo por você. E, se precisar e fizer sentido, pode contar comigo. Nem que seja só para ouvir.

Um beijo salgado e o brilho aquoso dos olhos são as respostas da mulher, junto com um sorriso cheio de significados, onde é possível ler, por certo, um “até breve, eu espero”. E a conexão se desfaz, com o retorno do gestor. Tina se despede e volta para seu setor. Antes, porém, aproveita o tempo restante do intervalo e vai à mercearia próxima à empresa. Precisa comprar algumas frutas para as meninas.

 

 

14h15

No retorno, um susto aguarda a mãe de Leila e Lúcia sobre seu guichê. Um susto bom!

— Acabaram de entregar. — Diz Emília.

Sobre sua estação de trabalho está um arranjo de flores azuladas, brancas e lilás, todas em formato de sinos. Acompanhado de um saquinho transparente com sementes, além de uma simpática latinha de chá. O seu favorito, aliás.

Encantada e encabulada, a mulher senta-se e finge não se importar com um pequeno envelope preso às flores, esperando até a colega estar longe o suficiente.

Enfim, sem bisbilhoteiros por perto, abre o recado. Mistério quase revelado. Quase: o bilhete é anônimo; a mensagem, nem tanto.

 

"Vi o que fez hoje. Você se importa, é profissional e humana!

Isso faz a diferença! 

Tenha um ótimo dia!

P.S.: Recomendo plantar as sementes.

Nos livros, estas flores representam algo muito bom.

Que esse “algo” sempre a encontre!" 

 

A leitura aquece as têmporas e traz um brilho aquoso a seus olhos. Pelas palavras e termos, não presume ter sido Rachel; mas é alguém da firma, com certeza.

Reconhecimento, carinho e enigmas! Despertada, uma Tina romântica não pede nada além disso para assumir a jornada da tarde; e caprichar ainda mais na empatia com o público. Ela se permitirá o cultivo da boa sensação até o término do expediente.

Haverá, sim, uma ligação de seu advogado, reafirmando nada ter prosperado, ainda, na busca do acordo com o ex. Mas ela não se afetará hoje. A notícia será considerada previsível. E não apagará as cores e as palavras depositadas em sua mesa de trabalho.

Aliás, as boas energias permitirão ver Sofia saindo do elevador, rumo à sua casa, fazendo-lhe um último aceno. Sua mente tampouco se ocupará mais com indagações para tentar decifrar as caras e bocas matinais de Laura. As teorias conspiratórias que se danem! Ao menos, hoje...

 

18h10

Ao final do expediente, sua versão sonhadora sairá de cena, entregando o posto à Tina planejadora, mais uma vez. A caminho do terminal de ônibus, manterá atenção na travessia das ruas movimentadas; e passará longe do sujeito embriagado, que faz discurso sobre o fim dos tempos e os horrores da cidade. Mas fará tudo com uma leveza acima da usual. Já no coletivo, não se importará muito com o barulho de um casal de namorados brigando e se reconciliando no outro lado do corredor; nem com os dois passageiros a puxar confusão com os demais, por não quererem usar a máscara protetora.

Seus disciplinados pensamentos preferirão voltar a checar o restante da programação: passar na casa de Vera; tomar um café encostada no balcão da cozinha enquanto escuta o relato do dia, procurando ser mais receptiva com os comentários maternos; agradecer e levar as meninas embora de Uber, ouvindo possíveis falas do motorista sobre a pandemia. Em casa, verá banho para as três, preparará a refeição da noite e o almoço do dia seguinte. Por fim, descansará enquanto vê as pendências.

Um desavisado, se acompanhar a jornada dessa mulher, poderá dizer: "É só mais um dia se encerrando, na luta rotineira de uma cidadã, como tantas outras". Conclusão cômoda e fácil de espectador. 

Para quem é uma Tina, entretanto, não há como se dar a esse luxo: cada trilha, cada passo, é a sequência de uma meticulosa construção, em que a regra é poupar energia para as verdadeiras prioridades, para o que faz sentido e não pode esperar. Há pouco espaço para lamentar fragilidades, assustar-se com o desconhecido ou temer não dar conta.

Hoje, em particular, haverá ainda menos espaço. Tina, ou melhor, todas as Tinas escolherão adiar suas divergências e permitir-se leves sorrisos, ao encher o pulmão com um ar perfumado, traduzindo-o num murmúrio quase lírico de gratidão pelo gesto anônimo, enquanto pesquisarão no Google o nome das flores do arranjo.

— ... campânulas...?

E antes de qualquer das Tinas com inclinação curiosa querer pesquisar o significado de receber flores dessa espécie, sua versão sonhadora convencerá as demais a não fazê-lo. Não nesta noite.

Esta noite não será de racionalizações, senões, armaduras, especulações ou pragmatismos. Ela apenas irá pesquisar como se cultivam campânulas; lerá sobre isto para suas filhas; e adormecerá, desfrutando o sabor inusitado da conclusão do dia. Sabor, cor e aroma.

Ao menos, desta vez. Só até amanhecer e tudo começar de novo.

 

 

"acordava sempre cedo, era um passarinho urbano"

(Belchior)

"ela é muitas, se você quer saber"

(Pitty)

 

"À noite, a cidade parece que some,
perdida no sono dos sonhos dos homens."

(Diana Pequeno)