Ontem e hoje
Ontem à noite, passava das duas da madrugada, com quem docemente eu conversava entristecido, quando olhei para o andar de baixo; ela ainda não havia ido deitar-se. Cada um de nós, espremendo nossos corações, destilava nossas desalegrias. Continuávamos separados mas sob o mesmo teto. Ela e eu, eu e ela e nenhum de nós a olhar um ao outro. Estranhos a dividirmos o mesmo espaço gélido. Eu a fitava por trás de uma cortina que a minha esperteza havia me ensinado a usar. Não gostava de que ela me visse observando-a, principalmente quando havia lágrimas em meu rosto rolando fartamente por alguma lembrança do passado, esse tão alegre e enganador ar dos nossos ventos de nossas estadas conjuntas.
O Dia dos Pais passara e nenhum dos meus filhos havia me abraçado ou me dirigido qualquer palavra alegre; comecei a pensar que também havia falhado como pai e passei a absorver mais um exemplar de tristeza. Meu sofrimento agora possuía duas faces distintas, como se ele me quisesse medalhar com a desgraça absoluta das últimas batalhas perdidas.
Mas eu adorava ofertar-lhe jóias caras, vestidas finos, perfumes franceses, bolsas de grifes, essas tolices – nem são tolices –, que toda mulher gosta tanto de receber de nós. Eu me presenteava realizando essas coisas e me contentava até. E foi assim boa parte de nosso convívio enquanto casados. Muitas festas e um denso burburinho de visitas. Tantos falsos amigos travestidos em alegres e sorridentes visitantes, donos de apetites voluptuosos; a sociedade tem dentro de si um amplo teatro festivo e sempre está a representar e não lhe faltam peças e mais peças.
No leito, apenas eu e a solidão deitávamos. O sono me chegava tarde, quando a madrugada queria despedir-se do luar e tanto o orvalho quanto as minhas lágrimas já haviam evaporado. E então eu conseguia desligar-me da vigília e sonhava casando-me outra vez com ela e sentia as alegrias ao rever o nascimento dos nossos filhos, nosso primeiro carro novo, a primeira casa comprada, os passeios descontraídos aos domingos.
Cedo eu ia trabalhar. O café da manhã nos era mudo! Até o costumeiro bom-dia de antes andava sumido, culpa dos dois. Nossos olhares não se amavam mais e por isso ficavam cada vez mais distantes um do outro. E eu deixava o meu barco ir vencendo as ondas altas da desesperança rumo a algum cais onde eu pudesse ancorar além de mim, o que em mim relutava muito a permanecer vivo. Mas o oceano parecia-me largo demais e seu horizonte infindo; eu desejava vencê-lo, mas meu barco pedia para que eu retornasse à areia deixada na praia de antes.
O que temos dentro de nós nem sempre é o que desenhamos e mostramos aos outros. Naquele dia, eu me levantei cedo mas só deixei o quarto, rumo à mesa do café-da-manhã , quando já iam dar 8 horas. Aprontei minhas malas, lavei bem o rosto chorado de toda a madrugada, retirei da cabeceira da cama a medalhinha de Nossa Senhora que ela havia me presenteado um dia e desci suavemente pelos degraus da escada. Sentei-me à mesa e me servi. Ouvi que na biblioteca alguém furdunçava; devia ser ela despoeirando os móveis. Não olhei na direção dos olhos, mas apenas na do ouvido e do coração. Liguei a televisão, distraído entre um pãozinho com patê de queijo e o programa que passava. Pedi que o jardineiro apanhasse as minhas malas e pusesse no porta-malas do meu carro.
Como é lindo o perdão e tão manso o amor! Eu levantei-me e me dirigi à porta para deixar de vez a casa dos sonhos. Não dei mais de três passos quando senti a mão dela em meu ombro. Voltei o olhar à procura do dela e o encontrei cansado e triste em sua face.
- Não estás alegre, Marta?
- Não!
- Mas após todo o teu discurso diário...
- Nunca te falei o que sentia o meu coração.
- Adeus!
- Não vás!
Hoje fazemos trinta anos de casados. Preparamos uma linda festa. Nosso presente maior são os netos gêmeos que nos chegaram há pouco mais de um mês. Permanecemos a nos estranhar no cotidiano, mas os nossos olhares aprenderam, após toda essa crise, a apagar incêndios e dizer basta! Nunca mais deixaremos de ir ao cinema às sextas e a dançar até tarde nas noites dos sábados. Aos domingos continuarei a ler muito, enquanto ela se queimará ao sabor do sol da piscina, o que eu mais detesto fazer e por isso quase nunca a acompanho.