ACHADO NA GAVETA

Existem certas coisas que devem ser deixadas onde estão, que é melhor fazer de conta que não vimos e, com toda certeza, esquecermos delas para sempre.

Aquela escrivaninha antiga e empoeirada no sótão da casa em que vivia dona Sinhá é um bom exemplo do que estou afirmando.

Depois que ela morreu, Teobaldo, seu filho mais velho, remexendo na caixa de costuras encontrou uma chave pequena, dessas peças de prata delicadamente trabalhadas por artesão caprichoso com a etiqueta amarrada com um fio de lã, em que estava a indicação: memórias.

Tem um ditado popular que diz: “curiosidade matou o gato” e Teobaldo deu tratos à bola a fim de localizar a fechadura para aquela chave e desvendar as memórias que ela guardava.

Experimentou em todas as fechaduras dos armários por dentro de casa, no quarto das tralhas no fundo do quintal e, conversando com os parentes sobre o achado misterioso, a prima Maria lembrou que talvez fosse da escrivaninha do sótão aonde eles iam brincar quando crianças e morriam de medo do bicho papão que morava dentro dela.

Imediatamente foram até lá e, de fato, a pequena chave abriu sem dificuldade o gaveteiro do lado esquerdo da tal escrivaninha.

Na primeira gaveta, a menor delas, encontraram lápis de diversas cores, tinteiros vazios, penas de aço em diversos formatos, folhas de papel mata borrão, um raspador antigo com cabo de osso e algumas borrachas ressequidas pelo tempo.

Na segunda gaveta, cadernetas com anotações das compras efetuadas no armazém do sr. Nicolau cujos pagamentos eram efetuados em datas marcadas no rodapé de cada página. Um livro de capa preta com o título – Diário – em letras que em outros tempos foram douradas.

Em sua última escrita, com letra trêmula, estava, 12 de novembro. Acho que este será o meu último registro. Minhas pernas não aguentam mais subir essa escada. Meus filhos já estão adultos, vivo só e não tenho mais novidades para registrar. Adeus. Espero que tudo o que escrevi somente seja lido daqui a 100 anos quando não terão mais o poder de afetar a vida de ninguém...

Na terceira gaveta, bem maior que as anteriores, vários desses diários, amarrados com fios de lã com as etiquetas dos anos em que foram escritos e caixa com fotografias, a maior parte em preto e branco. Tudo isso precisava ser lido imediatamente. Quantos segredos de família estariam contidos naquelas páginas...

Teobaldo procurou com avidez entre os muitos diários o que estivessem anotados acontecimentos do ano do seu nascimento...

7 de abril

Minha filha nasceu morta. Estou desolada. Teobaldo e eu esperamos tanto por esse filho e no final, além de não ser um menino para herdar o nome do pai, nasceu morta, a pobrezinha.

8 de abril

Teobaldo me disse que nosso filho vai chegar ainda esta semana. Nhá Chica, vai trazer logo depois do parto da moça que foi enjeitada pelos pais. Coitada. Deus tenha piedade dela. Eu não quero conhece-la nem sequer saber seu nome.

9 de abril

Deus seja louvado. De madrugada, Teobaldo trouxe nosso filho. Vai se chamar Teobaldo Medeiros de Albuquerque Filho e será registrado como se tivesse nascido no dia 7. Ele tem a pele muito branca, cabelos ruivos e os olhos de um cinza que parece ficarão azuis... Apesar de ser muito diferente de nós ele será amado por todos, porque esse segredo ficará só entre Teobaldo e eu. Não vou contar nem mesmo a mamãe que vai chegar hoje da fazenda para cuidar o meu resguardo. Graças a Nossa Senhora do Bom Parto estou produzindo muito leite para meu filhinho. Eu nunca vou dizer ao meu filho, nem a ninguém, que ele é adotado. Nunca mais escreverei sobre isso.

- Teobaldo, que é que você tem? Por que está com essa cara?

- Leia a página do dia em que nasci e você vai entender. Você tinha razão quando dizia que eu tinha sido encontrado na caçamba do lixo.

- Mas eu dizia isso era nas brigas, quando éramos crianças, e você me chamava de nega pixaim. Por que lembrou disso agora?

- Eu fui adotado. Ninguém sabe a minha origem. Por isso que eu sou ruivo, diferente de todos os pretos da família que eu conhecia como meus pais, meus avós, meus tios e primos...