ALMAS E RODAS
Outubro de 2021, numa sexta-feira, após o meio da tarde, bairro Tingui
O transporte de aplicativo para numa rua residencial. Um passageiro embarca. Seguindo a etiqueta aprendida, Lúcia cumprimenta o cliente, que aparenta ser de sua geração:
— Boa tarde! Senhor Gomes...? Tudo bem?
— Boa tarde! Tudo bem, sim. E com você?
— Hah! Daquele jeitinho, né? Tem sido um período difícil. Muitas empresas fecharam. A minha, inclusive.
— Ah... Sei como é...
— Mas agora estou mais tranquila: essa nova função tem me permitido pagar as contas.
— Que bom.
— Na verdade, já estou até gostando do trabalho...
O passageiro dá um grunhido que soa como um "pois é" sem sal. Lúcia sabe que isso, após a sequência de respostas curtas e padronizadas, sugere desinteresse em prosseguir aquela conversa. A despeito de sua vontade imensa de trocar palavras, de tornar o dia mais ativo, sabe que deve recolher o tema. Mas ainda faz uma tentativa mais neutra, como última cartada.
— Tem álcool em gel, balas e lenços de papel no recipiente aí atrás...
— Entendi.
Com essa resposta, a decodificação está completa. Ele não quer mesmo falar. Pelo canto dos olhos e do retrovisor, percebe o homem de meia-idade, no banco de trás, mergulhado em algum debate escrito no celular. A expressão sisuda atesta: o assunto a envolvê-lo pode ser tudo, menos divertido.
Lúcia olha o sistema: a viagem será até o Alto Boqueirão. Mesmo com o trânsito ajudando, é preciso considerar meia hora de silêncio cordial na cabine do veículo. De forma automática, dá uma ajeitada nos caracóis frontais de seus cabelos, como se precisasse removê-los da testa; mas não precisa. É apenas um vício assimilado para contrabalançar com a timidez.
Silêncio: um desafio difícil para lidar, desde sempre. Por isso ela escolhera, entre as opções restantes, quando veio o desemprego, ser motorista de aplicativo.
Sentiu algum medo no começo. Na verdade, ainda sente. Ouvira tantas histórias antes de começar: passageiros estranhos, assaltos, conversas indecorosas. Sem contar as ocasiões em que o banco de trás viraria palco de bate-boca entre seus ocupantes.
Mas a crise dos últimos anos a pegara de jeito. Sua área, a construção civil, fora muito afetada. Os outros lugares que poderiam ter interesse em seu currículo já dispunham de profissional na vaga, ou de muitos candidatos no cadastro.
Buscou outras opções. Mas as encontradas mostraram-se insatisfatórias na jornada ou na contrapartida. Às vezes, em ambas. Sem contar que algumas implicariam abrir mão de interagir com pessoas. Isso, para ela, seria a morte em vida. Assim, antes de aceitar uma dessas capitulações, decidiu arriscar o caminho sugerido por amigos e tornar-se motorista profissional. Ao menos, até a maré mudar.
— Chegamos, senhor.
— Opa!
O passageiro desce do carro, ainda debatendo com o aparelho eletrônico, mal olhando para Lúcia.
— Tenha uma ótima tarde.
— Certo. Igualmente. — Murmura o homem.
Ela engole suas expectativas, engata a marcha e volta para a correnteza difusa do rio de veículos.
Novo sinal de demanda por corrida no aplicativo. Passageira na mesma rua, algumas quadras adiante. Destino: aeroporto. Ela aceita e guia no sentido indicado. Logo a encontra. A solicitante está acompanhada: duas crianças. Pelo modo como agem, aposta serem uma família.
— Boa tarde! Carolina...?
— Isso. Boa tarde, Lúcia.
Os meninos se aproximam da porta do carro de forma desordenada, implicando um com o outro.
— Paulo, Pedro, entrem no carro! E fiquem quietos enquanto eu guardo as malas.
Lúcia se dá conta de que já deveria estar fora do veículo, ajudando a mulher. Corre, então, para abrir o compartimento de seu sedan e esticar os braços para recolher a bagagem. A mala maior parece do tipo "distensão muscular"; e o esforço para erguê-la confirma a classificação. Depois, duas menores, bem cheias de ilustrações; além de três mochilas indecifráveis. Todos embarcam, os cintos de segurança são acionados e o transporte segue para São José dos Pinhais.
Após alguns matraqueados das crianças, e um pedido enfático da passageira adulta para que ambos falem baixo ou fiquem quietos, Lúcia arrisca de novo:
— Que meninos bonitos! São irmãos? Porque são bem parecidos.
— Obrigada! São gêmeos...
A resposta, tanto afetuosa quanto reticente, deixa Lúcia intrigada e cautelosa. Mas também aumenta sua satisfação, pois há sinais de disposição por conversa.
— Seus filhos, presumo.
— Sobrinhos...
A reticência, agora, parece engolir suspiros de dor. Lúcia se comove na mesma intensidade em que fica curiosa. Por um instante, não sabe como prosseguir a prosa. Mas tem certeza de querer fazê-lo. Além de suspeitar que o deve. Assim, procura esticar o assunto por suas laterais, até chegar ao ponto desejado. Como se estivesse jogando "cama de gato".
— Eles parecem gostar muito de você.
— Tomara que sim. Tomara...
As charadas da passageira mostram um labirinto para Lúcia: ora parecem buscar privacidade, ora soam como pedido de ajuda. A condutora vai precisar de muita criatividade para conseguir saber mais, sem soar invasiva.
O celular da mulher toca. Ela o desliga. A chamada volta. Carolina decide retirar o som do equipamento e o deixar no canto. A expressão da passageira muda, trazendo sombras cinzas para dentro do veículo. Essa atmosfera é sentida por Lúcia, fazendo-a reagir do modo mais tradicional para ocasiões assim: fita o banco de trás pelo retrovisor. A cena constatada apresenta uma mulher inquieta, esforçando-se para não parecê-lo. Uma lágrima hesitante atesta essa conclusão, acenando no canto do olho direito. Também é possível notar o medo dançando sobre um dos gêmeos, pálido e paralisado, olhando para o aparelho telefônico.
Mas o outro menino tem outra conduta: compadecido, abraça a mulher, iniciando difícil conversa:
— Tia Nina... Você está chorando? O que foi?
— Nada, não, Paulo. Só um pouco de dor de cabeça. Só isso...
— É o meu pai, né?
A pergunta do menino faz aquela lágrima pendente desistir do autocontrole e despencar até o queixo da tia, ao mesmo tempo que o líquido salgado brota com sutileza das órbitas de Lúcia, revelando a ela toda a situação.
— Está tudo bem, senhorita Carolina? Há algo que eu possa fazer?
De forma instintiva, a passageira remove as evidências da dor, esfregando a palma da mão nas regiões umedecidas da face.
— É... estamos com alguns problemas. E o maior deles "parece" não aceitar ficar para trás.
— Acho que entendi. — Retruca a motorista.
Enquanto se lembra de suas próprias experiências ruins com relacionamentos doentios, a mulher faz perguntas, buscando não ser direta. Pois percebe, na fala de "tia Nina", esforços para poupar as crianças sobre a real intensidade da situação.
— Vai embarcar de imediato?
— Na verdade, vou buscar um carro de locadora. Para uma viagem, sabe...
— Certo. E está preocupada em viajar em paz, né...?
— Isso!
No entendimento de Lúcia, eis como a conversa se traduz: "Estou incumbida de levar as crianças para local ignorado pelo pai, mas receio que ele tenha informações privilegiadas de meus movimentos".
— Sua irmã...?
— Está fazendo uns atendimentos médicos num hospital. Ela... "caiu de uma escada muito alta", sabe?
Nova informação decodificada: "Ele é violento e já agrediu demais a mãe das crianças". A mulher precisa pensar bem e rápido, se quiser mesmo ajudar a passageira sem criar mais problemas para ambas. E tem um estalo. Carolina complementa sua explicação.
— Vamos pra um lugar em que as escadas não são um problema, enquanto os especialistas "consertam" a da casa deles.
— A locadora é a que estou pensando?
— Provavelmente. — Responde "tia Nina".
— E pode ser que mais pessoas também estejam pensando ou adivinhando?
— Pode.
Sem pensar muito, a mulher saca seu celular privativo e rastreia outros endereços próximos da mesma empresa ou das concorrentes, redirecionando a corrida para a cidade de Pinhais. Em seguida, fala para a tia das crianças:
— Há um lugar em que você e seus "conhecidos" não pensariam em ir para retirar um veículo. Estou indo para lá. Sugiro que você retire o carro no endereço que marquei aí. Faça uma sondagem prévia sobre disponibilidades pelo meu telefone mesmo. E... desligue o seu aparelho, assim que possível.
Surpresa e agradecida, Nina só consegue dizer "obrigada!", enquanto agiliza a comunicação virtual.
Passa-se algum tempo e a viagem se conclui. As crianças descem, enquanto Carolina remove suas malas e olha atenta ao redor. A motorista reinicia as rotinas para deixar o aplicativo disponível outra vez.
— Eu nem sei direito o que dizer a você! Muito obrigada! A corrida para cá resultaria num valor diferente, imagino.
Afastando-se das crianças e chamando a passageira, Lúcia cochicha.
— Sim. Resultaria. Mas optei por não registrá-la; e também por cancelar a anterior, como se vocês tivessem desistido e saltado ainda na Avenida das Torres.
Com novas lágrimas — desta vez por gratidão —, a tia das crianças retira valor em dinheiro do bolso e o entrega à motorista, que procura calcular o troco baseada em sua experiência.
— Por favor, não precisa dar troco. Você já ajudou muito. E foi corajosa também, se envolvendo. Afinal, não há como ter a certeza se não sou a...
— ...vilã? Olha... já convivi bem de perto com relacionamentos abusivos. Acredito conseguir interpretar alguns sinais. E, pra todos os efeitos, não estou te levando para fora da fronteira ou algo assim. Atendi a uma corrida na área metropolitana. Só isso...
— Você recuperou um pouquinho da minha fé no ser humano. — Fala Nina, soando encantamento.
As duas esboçam sorrisos doloridos e solidários. Há um abraço. E se despedem. Em seguida, Nina e seus sobrinhos entram na loja, e uma profissional uniformizada começa a atendê-los.
Comovida e lembrando de um ex-noivo violento de seu passado, Lúcia dá partida no carro, prosseguindo seu ofício. Decide voltar pela rodovia PR-415, que conecta a cidade com Curitiba, via Tarumã. Quando está mais próxima ao bairro curitibano, nova corrida é solicitada. O passageiro, de nome Artur, solicita transporte até o Terminal Guadalupe, no Centro. E aguarda na primeira quadra da Avenida Victor Ferreira do Amaral.
Avaliando que o itinerário a deixa mais próxima de seu endereço, Lúcia acolhe a chamada.
Quando chega ao ponto indicado, encosta o carro à margem da via, no local marcado pelo aplicativo. Ao primeiro olhar, não vê ninguém. Está prestes a murmurar seu estranhamento, quando é assustada por batida de mão no vidro da janela de sua porta. O tal Artur acaba de surgir do nada.
Forçando recuperação rápida, ela cumprimenta o vulto, fazendo a tradicional pergunta:
— ... Artur?
Com ar soturno, o sujeito responde, acenando a cabeça. Evita olhar direto nos olhos de Lúcia, senta-se no banco de trás e inicia conversa no celular, porém em tom bem baixo. Mal dá pra ouvir algum som que possa ser chamado de voz. A motorista começa a ter um mau pressentimento. Porém, o indivíduo já está dentro do veículo. O jeito é seguir viagem, acionar as rotinas de segurança e orar para, ao fim, concluir ter sido exagero, motivado pelas lembranças despertadas na última corrida.
Meia quadra antes do destino, ela escuta uma palavra, emitida por voz disfarçada sob a gola da blusa.
— Pare.
O pedido, em tom seco e distante, transporta a mulher para imagens inquietantes. Uma estranha onda de calor percorre sua espinha. Ela se lembra do filme "Colateral", em que Jamie Foxx é um taxista americano transportando um assassino profissional, vivido por Tom Cruise, em sua noite de “serviços”. E não há espaço em sua alma, agora, para considerar tratar-se de exagero. Em sua mente, uma legião de orações desfila, forte e fervorosa, pedindo proteção.
— O senhor vai descer antes?
— É só um instante. — Responde, em tom frio e como quem sinaliza não desejar ser abordado de novo.
Em seguida, o sujeito fixa o olhar através da janela. Há um carro branco com três homens dentro e os faróis acesos. Lúcia sua frio. As têmporas se aquecem e há estranhos arrepios na nuca. Súbito, o tal veículo observado liga o motor e sai. Artur volta a sussurrar para seu telefone. Mas, desta vez, ela consegue ouvir.
— Cheguei tarde. Vou encerrar, sem conclusão.
E, dizendo isto, o homem sombrio bate com a mão no banco da motorista, sinalizando para prosseguir. No Terminal Guadalupe, Artur desce fazendo breve aceno e some, dobrando numa das vias próximas daquela estação. Lúcia respira fundo, reza mais uma vez e decide pausar para tomar café. Precisa de um fôlego, após o medo sentido. Mas só fará isso quando se considerar longe o suficiente de seu "Tom Cruise tupiniquim".
Entra no Shopping Mueller e desce até a Havanna Cafeteria. Quer se recuperar num lugar aberto, iluminado e cheio de pessoas transitando. Quer apagar com veemência a forte imagem instalada na mente: a de que poderia ter um triste fim e as pessoas demorarem para saber. A de querer gritar, conseguir fazê-lo e, mesmo assim, não ser ouvida em canto algum. Entrar na estatística de sumiços silenciosos nas grandes cidades.
A atendente se aproxima.
— Hola.
— Boa noite. Gostaria de um café preto médio e uma empanada argentina de carne.
A simpática funcionária anota, sorri e se retira para preparar o pedido da cliente.
— Lúcia?!
A voz chamando seu nome é conhecida. Ela se vira na direção do som para responder.
— Bia? Oi!
Uma mulher alta, ruiva e de sorriso largo vai até sua mesa e a abraça.
— Como você vai?
— Na luta. E você?
— Também. Às vezes, na lona; às vezes, no picadeiro. Mas sempre segurando a peruca. O show não pode parar, né...? Hahaha!
— Ah, amiga. Adoro e invejo esse teu humor. — Comenta Lúcia, sorrindo e soltando um suspiro ao mesmo tempo.
Beatriz, ou Bia, percebe a inquietação. E então, fala:
— E aí, tá com um tempinho? Posso tomar café contigo?
— Sim, claro. Vou adorar. Tô precisando de companhia que eu conheça e confie...
Bia sorri e reparte a mesa, os ouvidos e o coração com a amiga. As peripécias do dia são narradas entre uma xícara e outra do café, um pedaço e outro das empanadas, um suspiro e outro das vozes. A certa altura da conversa, Beatriz segura as mãos de Lúcia e comenta:
— Nossa, querida! Consigo entender bem o que você sentiu! Precisei, por um bom período, atender a muitas corridas à noite. E passei alguns medos, ora imaginários, ora bem concretos.
— Difícil, né?
— Demais. Certa vez, entraram dois engravatados, numa conversa muito pesada, pedindo para eu levá-los a um lugar longe do Centro. E já eram 22h! Fui ficando muito tensa, principalmente quando um deles mexeu no paletó e eu pude ver um coldre com pistola sobre a camisa alinhada. Gelei na hora e pensei no pior. Aí, não sei como, saiu uma frase de dentro de mim: "Ai, moço, por favor... não quero confusão! Tenho um bebê pra criar e uma mãe idosa que precisa de mim!"
— Cruzes, Bia! Que corajosa de ser assim, direta!!
— Ou louca, né, amiga?
As duas riem. Se de nervosas ou desopilando a mente, não há como afirmar. Talvez nem elas consigam. A ruiva alta prossegue:
— Aí... um deles me disse: "Fique tranquila, senhora. Somos agentes federais! Mas vou lhe dar um conselho: ao nos deixar no local solicitado, volte sem pegar corridas na região. Pois aí, sim, poderá estar encontrando muita confusão!"
— Cruzes!
— Hah! Foi bem o que saiu da minha boca na hora.
As risadas param. Ambas se olham, solidárias e também impotentes.
— Decidi que aquele seria meu último dia de corridas noturnas...
— E conseguiu, Bia?
— Não, né... Diminuí a frequência. Antes, ia sempre, quase diariamente. Agora, não mais. Mas faz muita diferença rodar à noite, de quinta a domingo. Ajuda muito em casa. Então, ainda me arrisco nesses dias.
— Pois é. Entendo bem disso. E olha que nem tenho criança.
— Mas me diz uma coisa, Lúcia: esquecendo os perigos, você gosta de estar nessa função?
A mulher de cabelos negros e nariz arrebitado olha para a amiga, pensativa. Então, faz um sorriso ambíguo e responde:
— Como vou dizer? Eu não gosto, mas, ao mesmo tempo, gosto. Aprende-se tanto sobre as pessoas... É algo fascinante. Se esquecermos o perigo, claro.
A ruiva balança a cabeça, concordante.
— Falou tudo, querida! Eu ainda sonho em passar em algum concurso bom na minha área. Preocupo-me com o Flavinho. Mas não posso negar: há algo muito cativante em transportar tantos pedaços da alma humana de nosso tempo.
— Às vezes, parece estarmos vendo vários capítulos, de várias novelas diferentes, ao mesmo tempo, não é?
— Haha! Isso mesmo!
Silêncio cúmplice. Rompido pela ruiva:
— Já ficou encantada por algum...
— ... passageiro? Já, claro. Eu acho. — Sorri Lúcia.
— E...?
Eis uma hora difícil, mesmo perto de uma amiga tão especial: falar de seus impulsos e atrações. Assim, adota a resposta mais inofensiva:
— E nada, né? Achei bonitnho, legalzinho, educado... Mas não sabia nada da vida dele; e achei melhor não misturar as coisas no trabalho.
— Humm! Muito bem! Tremenda "profissa"! Gostei de ver...
— Tá debochando, é? — Sorri a morena, na defensiva.
— Nem de longe! Você está certa! Agora... Esse teu "bonitinho, legalzinho" não convenceu, não...
— Ah, é? E como você diria?
Bia deixa a face irônica e responde:
— Ora, assim: "Nossa! Que gato! Que pedaço de mau caminho! E ainda é muito gente fina!"
— Hahaha! Só você mesmo...
Lúcia fita a amiga, com ar inquisidor.
— Tá... E não vai contar o seu lado?
— Bom... Já transportei algumas pessoas que encheram meus olhos. Mas... Só um me encantou pra valer...
— Opa! Conta aí!
As duas riem. Bia relata:
— O nome era David. Veio para Curitiba assumir um cargo numa empresa que se instalou no Palladium. Atendi a corrida do dia de sua posse. Fez muitas perguntas sobre a cidade. Queria se localizar; saber onde seria bom fazer compras; entender o sistema de saúde, as opções em seu bairro e na região da empresa. Fui bem solícita e, ao final, desejei boa sorte no novo trabalho.
— E...?
— E aí coincidiram muitas outras corridas, por conta do horário e do trajeto iniciais que eu tinha naquela época.
— Ora... o que é o destino, não? — Ironiza Lúcia.
— Engraçadinha! Foi mesmo coincidência, tá? Pelo menos nas duas primeiras semanas...
As duas caem na risada.
— E como evoluiu?
— Ah, você sabe... Ele sempre fazendo perguntas sobre coisas da cidade. Vira e mexe, acabava falando algo de sua vida, e eu da minha. Um dia, entramos no assunto "bons filmes, cinemas e lugares para jantar".
— Ora, ora... Deixe eu adivinhar: ele falou que adoraria ir a um cinema ou a um restaurante, mas ainda não conhecia ninguém o suficiente para ter companhia...
Bia ri, encabulada.
— Não foi bem assim... Mas foi parecido...
— Viva!!
— Saímos algumas vezes. Eu gostei muito do beijo dele...
— E o que aconteceu com o príncipe encantado? Virou abóbora?
Bia faz expressão de desapontamento e responde:
— Praticamente: após três meses, a empresa decidiu remanejar sua área para Londrina.
— Não é um lugar tão longe assim.
— É, eu sei. Mas não é o que eu quero pra mim. Ser reboque das ambições de alguém? Não, não. E quanto aos meus sonhos? Já basta a experiência com o pai do Flavinho.
— Que pena. Parece que esse David era.... legalzinho...
As duas dão risadas. Em seguida, olham as horas. E sabem que precisam encerrar a pausa.
Conta paga, elas se abraçam.
— Obrigada, Bia! Você me ajudou bastante hoje!
— Fico feliz! Cuide-se amiga!
Minutos depois, Lúcia está em seu carro, na rua Mateus Leme, acionando seu aplicativo. E já aparece uma chamada. A passageira espera em frente ao bar Hop'n'Roll. Seu nome é Thayse, diz o sistema. Ao encostar o carro, percebe que a moça está grávida. O ventre já se destaca bastante. A expressão da jovem é de desconforto.
— Boa noite... Thayse?
— Oi. Tudo bem?
— Tudo, sim. E com você?
A mulher geme, enquanto tenta se acomodar no banco de trás, demonstrando alguma dificuldade para fazê-lo.
— Ai... Mais ou menos. Tô sentindo umas coisas aqui...
— Entendo. Sei como é.
— Sabe mesmo? Já teve bebê? — Reage a cliente, quase ríspida.
— Não, não tive. Desculpe. Tentava apenas ser solidária.
A passageira, geme, coça os braços e fala:
— Na verdade, sou eu quem deve pedir desculpas. É que estou irritada. Passei muito mal há pouco...
— Está perto de ganhar?
— Muito... muito perto. — Responde Thayse, inquieta e com sinais de suor na testa.
Lúcia percebe e não perde tempo: põe o carro em movimento, rumo ao endereço marcado.
— Desculpe se pareço invasiva, mas... haverá alguém pra te receber nesse endereço? É que você não parece em condições de...
— Moça... É Lúcia o seu nome, né? — Interrompe a passageira, entoando impaciência na voz.
— Sim.
— Bom, Lúcia, só quero ir descansar. Já marquei de ir ao meu médico amanhã cedinho.
— Está bem. — Responde a motorista, fingindo conformar-se.
Com o canto dos olhos, a mulher ao volante espia os movimentos da jovem gestante: ela digita nervosa alguma mensagem no celular. Em seguida, o retrovisor demonstra o quão frustrada Thayse está. O olhar, mesclando indignação e autopiedade, é agora fonte da água salgada que reluz no rosto juvenil.
Com o coração cortado, e imaginando as possíveis histórias daquelas lágrimas, Lúcia está pronta para tentar nova abordagem, mesmo arriscando receber outra "patada". Mas as coisas mudam no interior do veículo.
— Ai, meu Deus! Moça! Moça! — Grita a passageira.
A motorista já adivinha o que vem a seguir.
— Está na hora, né?
— E-eu acho que sim. Molhei o seu banco... sinto muito.
— Não se preocupe com isso agora. Você tem uma maternidade de preferência?
— Meu médico indicou a Santa Brígida...
Lúcia age rápido e busca o trajeto no aplicativo. Vê que a instituição fica no bairro Água Verde. Por precaução, aciona o grupo de parceiros criado no celular, informando a ocorrência.
— Não estamos tão perto assim dela, mas vou dar um jeito. Sugiro avisar o doutor.
Em seguida, redireciona o veículo, acende a luz de emergência e aumenta a velocidade, mesmo sem exageros.
A garota geme. Mas não parece ser por conta do parto iminente.
— Está sentindo mais alguma coisa?
— Deixa pra lá... vai passar. — Resmunga, resignada e melancólica.
Lúcia arrisca nova espiada pelo retrovisor. Vê um choro constante e conhecido: aquele que vem da solidão.
Um motociclista afoito, num cruzamento, quase bate no carro e xinga muito as duas.
— Vá à merda! Não tá vendo que é emergência? — Grita a motorista, arrependendo-se em seguida.
— Nossa! Que goela! — Ri, pela primeira vez, a passageira.
Lúcia tem um breve lampejo de alegria por ter ajudado a passageira a diminuir sua tristeza. Mas olha preocupada pelo retrovisor, pra ter certeza que seu xingamento não despertou alguma ira psicótica no rapaz da moto, só relaxando quando confirma não ter ocorrido. Já presenciou coisas bem trágicas no trânsito por conta de cenas assim.
Trajeto concluído sem novas peripécias, a motorista desce correndo e chama a equipe da maternidade para auxiliar a transportar Thayse.
— Obrigada. — Fala a jovem, enquanto é amparada pela equipe de assistência.
— Imagine. Temos que nos ajudar nessas horas.
Nova lágrima aparece na face da passageira. Como em reação à frase da motorista.
— Deseja que eu avise alguém? — Arrisca Lúcia, mais uma vez.
E agora aparece uma resposta pungente. Uma já adivinhada, pela mulher dos cabelos negros, nas reações anteriores da quase parturiente:
— Não tenho ninguém para avisar, não. Estou nessa sozinha.
A resposta é dita em tom sereno, quase conformado. Mas melancólico e permeado de sal.
Lúcia olha para a cena. Lembra-se de tantas coisas, de tantos momentos. Pensa em familiares relatando dores. Lembra-se de suas próprias péssimas escolhas para relacionamentos. E, também das boas, que, mesmo não durando, trouxeram luz e amparo em momentos necessários do seu caminho. Então, põe a mão no ombro de Thayse e fala:
— Não está mais. Ao menos, até você ir lá pra dentro; até o médico chegar. Só vou embora depois.
Perplexa, a grávida inquieta sorri e estende a mão para a mulher de cabelos encaracolados.
— Meu Deus... obrigada mesmo!
Então, entrega um cartão para Lúcia, citando seus contatos. E fita os olhos negros da motorista, com profundidade. Uma conexão se estabelece por breves segundos. Tempo o bastante para tocar os corações. E depois se desfaz. Ou ao menos se interrompe.
As fichas de entrada da paciente são preparadas, enquanto a equipe a leva para dentro. Lúcia se identifica como responsável pela confirmação dos dados. Um homem de meia-idade, com traje branco e uma maleta, passa pela recepção e a cumprimenta, apresentando-se como o obstetra de Thayse.
Após assinar alguns papéis, a motorista de aplicativo vai para a sala de espera, onde pega o chá disponível no balcão e aquece os reflexos de sua alma. Em seguida, escolhe um mobiliário vago para sentar-se. Só então vê uma mensagem em seu celular. É a Bia: "Oi, o que houve aí? Vi seu aviso no grupo."
Ela começa a responder quando se dá conta de estar sendo observada. De pé, diante dela, está a própria Beatriz.
— Oi! Nossa! Você veio até aqui?
— Você não respondeu. Fiquei preocupada...
— Ah... verdade... Já faz cinquenta minutos que você enviou a pergunta. Mas como concluiu que eu ainda estaria aqui?
Bia sorri, senta-se ao lado da amiga, suspira num misto de orgulho e preocupação e comenta:
— Luluzinha... Primeiro: sua mensagem não foi das mais claras sobre qual seria a emergência, ou sobre o que você faria. Mas como citou a maternidade, eu acredito ter deduzido certo: seu carro quase virou sala de parto, né?
— Pois é... Minha primeira vez! — Comenta, sorrindo.
Beatriz responde com risos leves e, depois, assume um tom quase professoral:
— Segundo: conheço você o suficiente para saber que não resistiria e iria pôr pra fora a "boa samaritana" de sua alma, ficando ao lado da passageira enquanto fosse necessário. E como não me respondeu... foi fácil concluir.
— Sou assim previsível, é?
— Ah, minha linda. Você não é previsível. É admirável! Só receio que esse teu jeito de ser torne difícil "Dona Lúcia" achar uma saída financeira, no curto prazo, para não precisar mais transportar o mundo humano em seu carro no ritmo de "um dia, sim, o outro, também"...
Lúcia ouve a fala da amiga reflexiva, enquanto ajusta os caracóis da testa mais uma vez. Pensa em como foi o seu dia, em como tem sido sua vida. Pensa nas pessoas, nos medos, mas também nas emoções genuínas a aquecer o coração nessa "fase" pela qual passa. E, quando vê, já está respondendo à amiga, sem grandes dilemas sobre as palavras escolhidas:
— Quer saber? Talvez eu não esteja com tanta pressa assim. Ainda não...