Bonança

Não era apenas a música que as massas ouviam que tinha péssima qualidade.

Esse era apenas um dos sintomas de um processo de imbecilização coletiva, um plano de ação contínuo por parte da grande mídia.

Todas as classes sociais são afetadas, e para Zími era difícil entender o porquê de tanta falta de sensibilidade diante da necessidade de rejeitar o esdrúxulo, em nome do respeito à própria inteligência.

Um plano muito bem sucedido que controla o rebanho humano com facilidade assombrosa.

Para esse caso, as massas são controladas pela imbecilidade através de conteúdo imbecilizante.

Também são controladas pelo medo, e para esse caso há pastores que vendem até terrenos no céu.

Num período anterior à formação de sua banda, o duo Crop Circles, quando ele já atribuía essa imbecilidade coletiva à falta de qualidade humana, sua atual parceira musical Mila Cox o havia tirado, anos antes, de um plano de sociabilidade que beiraria o zero.

Ele tramava viver o mais livre possível das pessoas.

Sabia que para se aguentar vivo precisava correr na direção contrária àquela que a multidão seguia.

Seria para sempre escravo da necessidade de dinheiro, mas jamais formaria uma família tradicional brasileira, tendo em mente que jamais teria filhos, por todos os motivos possíveis.

A necessidade de muito mais dinheiro era a razão principal para não constituir uma família nos moldes convencionais, mas todo o resto era também assustador.

As crianças que ele via no prédio em que morava lhe pareciam robozinhos de apartamento, protegidos até mesmo de inimigos imaginários, jogando bola no carpete e empinando pipa perto do ventilador, quando não estavam jogando videogame.

Entre os excessos e as restrições, os adultos que as condicionam a essa vida viviam cheios de rancor, sob a falsa segurança de garantias trabalhistas, agonizando com a sensação de ter o tempo de vida se esgotando e sem nenhuma perspectiva palpável de felicidade verdadeira.

Esse esgotamento nas relações com o senso comum foi sanado apenas pelo acaso.

Ele não pensava mais em tentar fazer música.

Já havia integrado diversas bandas, muito mais para saciar sua necessidade de diversão do que por acreditar que iria muito longe nessas empreitadas.

Queria então se tornar escritor recluso e publicar livros apenas para que de alguma forma a arte desse sentido à vida de copywriter, que pagava suas contas.

Bandas também davam despesas, brigas e chateações de vários tipos.

Zími queria escrever sobre quão ridículos considerava os anseios da sociedade, individual e coletivamente.

A ideia de se juntar a Mila Cox e formar os Crop Circles partiu dela, e a princípio parecia tão absurda para ele, que foi aceita, só para que ele visse onde podiam chegar.

Nenhuma outra pessoa seria capaz de convencê-lo.

Ela tinha um gigante descontentamento com a sociedade paternalista e autoritária em que viviam, algo que Zími não via nas pessoas jovens e alienadas da idade dela, que tinha dezenove anos quando se uniram para fazer música.

Mila Cox era uma garota que Zími poderia reconhecer de tão longe quanto pudesse enxergar, apesar de ela ter um metro e sessenta e cinquenta quilos.

Zími não via também tal inconformismo nas pessoas de sua idade, uma geração estagnada no conformismo e na escravidão assalariada que era regra para que se considerassem dignos de se declararem cidadãos.

Juntos eram uma dupla que tocava sem guitarrista, com ela tocando seu Fender Jazz Bass azul a frente de um sintetizador e ele com seu kit minimalista de bateria que era tocado de pé, e ambos se alternando nos vocais.

Desde então, trataram de temas como liberdade, vergonha alheia, políticos escrotos, pastores vigaristas e descascando os charlatões de um modo geral.

Dividindo a autoria das canções com Mila Cox, Zími conseguia dar alguma vazão às suas pretensões literárias, confrontando a xenofobia e o provincianismo, que fizeram com que o melhor da música produzida no país ficasse restrita ao underground.

Havia uma banda chamada The Sun Also Rises, que fazia um indie rock genérico e imitava o Echo and the Bunnymen, e que tocaria no aniversário de Thurston, agitador cultural conhecido de Mila Cox, que era chamado assim por sua semelhança com Thurston Moore.

Foi apenas por gostarem do nome da banda que Mila Cox e Zími resolveram marcar um show naquele fim semana, que anteriormente estava reservado para folga das atividades musicais da dupla.

Acharam que os nomes das duas bandas ficavam bem no mesmo flyer, e além disso o amigo e vizinho uruguaio Silvano estava livre dos compromissos extramusicais fazendo carretos, e teria sua kombi disponível para transportá-los.

O evento aconteceu em Mauá, e reuniu os Crop Circles, a apresentação solo de Silvano e as bandas The Sun Also Rises e Lombra.

Era uma casa ampla, que fora adaptada para esse tipo de evento, e embora fosse evidente que não tivesse qualquer alvará para que shows fossem realizados ali, contava com o apoio dos vizinhos, que sempre faziam parte considerável do público presente.

Tinham sorte de conhecerem algumas pessoas que pensavam como Thurston, já que muitos lugares que outrora foram focos de alguma efervescência cultural alternativa estavam agora gourmetizados e hipsterizados.

Naquele sábado, Silvano fez o show de abertura, uma banda de um homem só, que tocava guitarra sentado para que pudesse fazer a parte percussiva com os pés. Era algo que resultava numa intersecção entre o punk e o blues.

A banda Lombra, que parecia tentar imitar o Circle Jerks, fez o segundo show, seguido pelos Crop Circles e com a banda The Sun Also Rises encerrando o evento, pouco antes das dez horas da noite.

Um típico dia de show para Mila Cox e Zími.

O que havia de especial para eles nesses dias não era glamour.

Tratava-se de um exercício de resistência contra o triste destino pré-programado da maioria das pessoas que os cercavam.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 21/08/2023
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