O rapaz olhava a cidade adormecida pela janela do seu apartamento. O silêncio e a paz da madrugada permitiam que finalmente vivesse o luto pela morte da mãe. As pessoas só entendem o luto quando vivem e sentem. O rapaz perdeu pessoas que realmente amava ao longo da vida, mas nunca o deixaram viver o luto. Apenas agora que não existe o luto, ele estar livre para vivê-lo. A vida mesmo quando é boa pode ser cruel.

          Olhando através da janela, sozinho em silêncio, dentro do silêncio, ele estava aliviado sem culpa nenhuma da inexistência do luto. O luto existe quando existe amor e não é culpa dele a falta de amor. Demorou para que ele entendesse que foi a vítima, não o algoz. Ele estava livre de ter que fingir um sentimento que não existia, livre de fingir que entendia que o abuso sofrido durante a vida toda foi por amor e ter sido jogado na casa de parentes, foi por necessidade. Ele estava com a alma leve porque agora podia ser verdadeiro. No velório, cobraram-lhe um discurso, mas ele negou. Não tinha o que falar.

          A alma do rapaz sempre foi pesada. Havia o peso da tristeza que ele escondia para aparentar uma vida perfeita, mentindo para os amigos. Não, o rapaz não era um mentiroso. Apenas tentava esconder a realidade indesejável de uma vida de abusos, mesmo sem ter a menor idéia que era abusado. Era sobrevivência. O grande problema foi que ele passou a acreditar naquela vida perfeita e perdeu a sua verdadeira essência.

          Um dia, quando precisou cuidar da mãe já idosa, teve consciência de tudo que sofreu e a partir daí obrigou-se a fazer o seu dever de filho. Uma dualidade tomou conta da sua alma até  perceber que não podia ser punido pelos erros de outra pessoa. Percebeu também que mesmo tendo sofrido, não teria coragem de virar as costas para a mãe e assim fez o que devia ser feito. Sentiu o vento batendo no seu rosto e ficou orgulhoso do dever comprido. Dever? Sim, dever, por que só podemos sentir o amor quando recebemos.

          

José Raimundo Marques
Enviado por José Raimundo Marques em 08/08/2023
Reeditado em 05/09/2023
Código do texto: T7856801
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