Onde se conjuga a televisão com a triste morte da burra Floriana
Cícero Pacheco, mais conhecido como Ciço Amarelo no ABC e arredores, ganhou um inesperado dinheiro no jogo do bicho. Naquele tempo não era ruim o rateio, e Ciço se viu dono da improvável quantia de Cr$ 20.000,00.
- Eita, seu Ciço! – disse o banqueiro, contente – quando tiver outro palpitinho desses não deixe de me contar. A cobra deu na cabeça, no terceiro e ainda lascou uma rabeira. Uma beleza! Ainda bem que o sinhô jogou do primeiro ao quinto!
- Pode deixar, seu Manoel que não lhe esqueço não – disse Ciço Amarelo, contente da vida, dando garra nos cobres.
- Mas, me diga uma coisa, seu Ciço – perguntou Manoel, curioso – um palpite bom destes foi sonho, foi?
Ciço disfarçou, não podia contar que tinha jogado na cobra e do primeiro ao quinto por que sonhou que estava fazendo xenhénhén com a sogra – senhora dona de uma língua venenosa e coração de cascavel, porém apetecível – e que depois ela se havia transformado numa cobra de cipó. Além de ser pecado trepar com sogra – imagine! – ela, se soubesse disso, ia descompor com ele e sua família até a quarta geração. Ave Maria!
- Foi não senhor, seu Manoel – mentiu Ciço, descaradamente – foi uma coisa que me zumbiu logo de manhãzinha: “Ciço, Ciço. Joga na cobra, Ciço. Joga na cobra do primeiro ao quinto, Ciço!”. Ai eu joguei...
- Que coisa! Fico até arrupiado – disse Manoel mostrando o braço – Isso é coisa de espírito. A minha mulher entende lá destas coisas. Diz ela que tem espírito que fica vagando, adivinhando coisas, fazendo bem e fazendo mal.
- Pois, é seu Manoel – disse Ciço rindo muito – Esse aí me fez bem.
- O sinhô bem que podia mandar rezar uma missinha pro coitado, né, seu Ciço?
- Pois é boa idéia, seu Manoel, vou mandar.
De posse dos vinte mil cruzeiros, Ciço, deitado na cama, pensou em mil formas de gastá-lo e poupá-lo, fazendo-o render. A mulher se animou toda:
- Ai, Ciço – disse Florinda, cheia de alegria – agora nóis pode comprar uma televisão de cor.
- Que televisão de cor, que nada, mulher! Vê lá se vou estragar o dinheiro com uma porcaria dessas!
- Porcaria, não! É tão bonito, Ciço. Se tu visse! Na casa da patroa tem uma, eu chego ficar lesa, olhando aquela boniteza toda!
- Lesa tu é de nascença! – atalhou Ciço, virando-se para o outro lado – Eu tenho que usar esse dinheiro numa coisa que preste! Pra melhorar a gente. Televisão! Só se for pra tu ficar mais lesa ainda.
- Pai? Ô Pai! – disse o filho do meio que, deitado no quatro ao lado, ouvia atento a conversa – compra uma jega, pai. E uma carroça. Enquanto o senhor trabalha, eu mais o mano pode fazer carrego e ganhar dinheiro.
- Como assim, uma jega?
- Uma jeguinha, pai e uma carroça. Assim, enquanto o senhor trabalha nóis faz frete. O dinheiro a gente guarda, pra mode melhorar a vida. Quem sabe até comprar a novidade da mãe.
Ciço não disse nada, mas o coração se aqueceu de orgulho por aquele filho. Menino danado! Inteligente. Bem se via que saiu ao pai. A mãe era uma lesa, coitada. Mas aquele menino era sabido demais.
- É – disse sério – Vou pensar.
Mas, o seu juízo já se havia decidido pela compra da jega, mais a carroça. Ia ser muito útil e o dinheirinho que rendesse podia muito bem ser guardado, já que trabalhava de gari na prefeitura e a mulher lavava pra fora, mais as meninas. Não passavam necessidade, graças a Deus, mas qualquer a mais podia render. No outro dia chamou o filho:
- Zezinho!
- Inhor, pai?
- Venha mais eu.
- Sim, sinhô.
Não disse aonde ia – era só o que faltava! Comunicar a filho o que queria fazer – mas, o rapazinho ia contente. Conhecia o pai, sabia que ele ia atrás da jega, mais da carroça.
Regatearam um bom tempo, com o dono das burras. Zezinho era sabido, conhecia burra nova e burra velha. Decidiram por uma jeguinha castanha, fornida de ancas, patas grossas, pelo bonito, bons dentes, novinha.
- Compra essa aí, pai.
- Pro mode, compro essa, menino? – disse Ciço, fingindo irritação, mas orgulhoso por mostrar ao dono das burras o saber do filho.
- Por que essa é nova, pai. Nem viçou ainda.
- Como é que você sabe disso? –perguntou admirado o dono das burras.
- Por que ainda tá com as coisas lá dela, bem juntas. Se tivesse dado cria, parecia diferente.- respondeu o rapazinho, cheio de orgulho, por que o pai estava olhando pra ele embabascado.
- Seu Ciço, vou dizer uma coisa pro senhor – disse o velho dono das burras – esse seu menino é um sabido! É um danado! Meus parabéns!
- É assim, mesmo – disse Ciço, quase a arrebentar de orgulho – saiu a mim.
Quanto à carroça, Zezinho disse ao pai que não esquentasse a cabeça, ele mesmo ia construir uma , mais o mano, que ficava mais barato. Sabia fazer, ia juntar o material no ferro-velho e depois o pai passava lá e pagava, saia mais barato. Ciço, coração inchado de orgulho paterno concordou.
Uma semana depois, Floriana, a burra, estava instalada num curralzinho que lhe prepara o Zé. Fizera tudo com base na orientação do Dr. Fragoso, veterinário da casa da ração, de quem com uma conversa mole de cerca-lourenço, se tornara amigo. Conseguiu inclusive orientação de como alimentar a burra e faze-la produzir.
A carroça, firme e bem feita ficou pronta logo depois. Com sistema de amortecimento e arreios, firme. Capaz de agüentar grandes trancos. Ciço, de tão feliz, deu a Zé um dinheirinho.
- Toma aqui, menino. Vai tomar um guaraná.
- Brigado, pai – disse o rapazinho, cheio de felicidade, pensando na namorada.
Dos Cr$ 20.000,00 apenas quinze foram gastos, Zezinho, convenceu o pai a comprar a tv em cores da mãe. Pequena, mas uma belezura, capaz de atrair os vizinhos. Que desde então viviam na cola de Ciço, cada vez que ia jogar no bicho. Até a sogra, de língua viperina, fez-lhe um elogio. Ciço agradeceu, sorrindo à socapa – se ela soubesse! Imagine!
A jeguinha era uma beleza, tratada a pão de ló, rendia no serviço que só a pega. O dinheiro arrecadado dos fretes, ia sendo guardado. Em dois anos, Ciço pode comprar um carrinho de praça. Já estava pensando em vender a jega, mas Zé, agora com a moral em alta, o fez desistir.
- Venda não, pai! A bichinha é tão servidorazinha. O Mano pode continuar com os fretes, e eu vou fazer praça.
- Você, menino? E desde quando aprendeu a dirigir? – disse Ciço admirado.
- Ora! Desde o ano passado, quando o senhor intentou comprar um carro de praça.
- Você é um danado, Zezinho! – disse o pai, num arroubo – Um medonho! Pois siga lá. Vamos ver no que dá.
A vida ficou muito mais fácil pra família de Ciço. Mesmo quando Zezinho intentou casar, o fez com a filha do presidente do sindicato dos taxistas, o que lhe rendia boas relações com o meio.
Floriana já era mãe de cinco filhas, a frota de carroças aumentava a olhos vistos. A filha mais velha de Floriana já lhe dera netos.
Porém, um dia aconteceu uma tragédia. Floriana era doida por jaca. Não podia ver uma, devorava-a. Era freqüentadora assídua da jaqueira grande, no descampado.
Acontece que a jaqueira havia crescido sobre a linha de alta tensão da companhia de eletricidade, uma jaca amadureceu, caiu e arrastou com ela o fio de alta tensão. O choque elétrico foi tremendo, Floriana morreu em segundos.
Zezinho, agora taxista e sindicalista – havia herdado o lugar do sogro, mas com mérito, os companheiros o adoravam – ficou revoltadíssimo. Chorou a jega como a um parente. A mulher, evangélica, ficou chocadíssima:
- Mas, meu filho, a jega era um animal. É pecado chorar por um animal como se chora por gente. Até parece! Jesus.
- Mas, eu gostava da Floriana como se fosse gente! Ela era tão servidorazinha, coitada! Se hoje pai pode descansar, se eu tô aqui mais você, nóis deve a ela, que fez a nossa fortuna – e soluçava sentido – A pobrezinha gostava de jaca!
- Nem pela finada minha mãe você chorou assim – disse amuada a mulher – mas, por essa jega!
Zezinho ignorou o comentário. Estava revoltado. Se a peste do fio não passasse por baixo da jaqueira, a pobrezinha da floriana não tinha morrido. Seu lado de sindicalista começou a gritar em seu peito revoltado.
Juntou-se ao mano e a mais de trinta carroceiros do ABC, devidamente armados com suas peixeiras e invadiu o primeiro escritório da companhia de eletricidade que achou. Queria retaliação, queria outra burra, queria que tirassem os fios perigosos de debaixo da jaqueira. Queria Floriana, sua jega, de volta, queria por que queria. Estava descontrolado!
A secretária, nervosíssima, pedia calma, oferecia cafezinhos gerais – o infeliz do chefe dera mais uma das suas famosas escapadinhas – atarantada como uma abelha, procurava entender o motivo da comissão de carroceiros que lhe invadira a sala. E perguntou, irritando ainda mais a Zezinho, que a olhou com um profundo desprezo – interiormente chamando-a de burra – por sua ignorância.
- Mas, meu senhor, me explique: esta senhora, Floriana, era sua parenta?