Dom Raul
Na tranqüilidade de uma sala grande, decorada com cuidado e sem apresentar ostentação, mas mostrando que o projetista teve o cuidado de colocar todos os móveis muito bem nas suas posições, o que facilitava o trabalho de quem estivesse usando a dependência da casa com pé direito de quase três metros, numa pacata e tradicional rua onde o asfalto não tinha chegado, Raul e Wladimir conversavam sobre armas.
Embora não fossem militares ou policiais, ambos mantinham o mesmo gosto. Pistolas sofisticadas de guerra e fuzis de assalto eram paixões cultivadas pelos antigos membros do Centro de Informações da Marinha, o então temido e eficaz Cenimar.
A chuva que caía em boa hora, ajudando a tornar a primavera mais florida, entrava pelos finos e estreitos vãos dos paralelepípedos da rua.
Nem Raul nem Wladimir eram da Marinha; por questão de necessidade, para não prestarem o serviço militar como soldados preferiram cursar o Ciorm, sigla do Centro de Instrução de Oficiais da Reserva da Marinha, nome que já foi alterado. A grande maioria dos estudantes que vai prestar o ingresso por provas no curso superior, prefere esta forma de servir. A explicação é simples. No momento que estão precisando de tempo para estudar para o vestibular, estariam sujeitos às ordens de não sempre compreensíveis sargentos do Exército. A solução era ou ser oficial da reserva do Exército ou da Marinha, já que a Aeronáutica, na época, não tinha este curso. Formar um oficial-aviador é muito caro. Estes cursos são ministrados nos finais de semana, e por isso a procura deles.
Com a expulsão e reforma de muitos oficiais das forças armadas, havia a necessidade de gente capaz ser chamada, pois as escolas militares ainda não tinham formado seus cadetes e aspirantes. Tanto Raul como Wlado, diminutivo de Wladimir, possuíam excelente currículo e foram imediatamente colocados em serviço na tropa, para suprir a necessidade da falta de oficiais que o movimento militar havia causado, em 1964.
Ou seja, não fizeram vestibular algum, e foram em pouco tempo promovidos a Segundo-Tenente. Designados para o Cenimar, pois ambos possuíam as qualidades necessárias para ocupar função no serviço de inteligência, ficaram na Marinha seis anos. Um “não” e esta ordem poderia complicar muito a vida deles.
Tornaram-se grandes camaradas. A vida militar tem esta faceta. Ou cria grandes amigos, ou por razões de promoção, idéias e função, podem tornar um pouco difícil a situação de um oficial com outro.
Tudo isto fazia parte de um passado um pouco distante.
Os dois amigos que conversavam enquanto estavam com os olhos fixos numa revista de armas, enquanto as mulheres estavam assistindo “Beleza Americana” noutra parte da bem organizada sala. A imagem na televisão era esplêndida, mostrando a qualidade do DVD.
- Veja esta Wildey. É coisa para ninguém botar defeito! Eu escolheria a de cano de dez polegadas. Onde apontasse, acertava – falou o dono da casa, Raul, hoje engenheiro dono de uma pequena, mas excelente firma de prospecção do solo.
- Raul, como sempre você gosta de armas tipo canhão. Esta pistola é considerada a mais possante dentre todas elas. Aqueles caçadores malucos que saem pelas matas americanas não usam rifles, gostam de acertar os pobres animais com esta pistola. Esta gracinha mata um urso no ato, se o tiro for bem dado, e o impacto que vai causar, principalmente se for quarenta e cinco magnum, dá uma cacetada no bicho que ele vai cair a meio metro de distância.
- Eu sei Wlado. Vou comprar uma arma desta.
- Já viu o preço?
- Tem na revista. A mais sofisticada está por dois mil e cem dólares.
- Coisa de qualidade tem seu preço, não?
- Sempre foi assim, Wlado. Com tudo. Nós somos modestos. Nossas coleções não são absolutamente nada, comparadas com os que adoram automóveis antigos e novos.
- Tenho um conhecido que exibe uma Porsche esporte, com dois anos de fabricação. Calcula o preço?
- Eu já vi um anúncio. Se não me engano, em torno de duzentos mil reais.
- Duzentos e sessenta, meu caro Raul. Não sei qual é o gosto de possuir um carro que só pode andar em pista que permita mais de oitenta quilômetros por hora.
- Mas nós também não temos ursos nem elefantes aqui, Wlado. E nossas armas, que foram desenhadas para isto?
- Ora, Raul, nem só para isto, você sabe muito bem. Você mora numa casa privilegiada. Embora tenha grades nos muros, o que faria se tivesse uma Wildey e um cara tentava arrobar a porta dos fundos, bem visível?
- Atirava nele, claro! Mas ia apontar a perna.
- E quem te garante que um tiro desta tralha, mesmo na perna, não pode causar uma hemorragia fatal?
- Não creio que chegue a tanto.
- Não? Raul, você não é médico, é engenheiro.
- Garanto que o sujeito não iria morrer. Só por muito azar!
- Talvez. Mas comprometido para o resto da vida, manco, garanto que iria ficar,
- E eu com isso, Wlado? Afinal, ele estaria dentro da minha casa, tentando entrar...
- Legítima defesa caracterizada. Mas com uma magnum?
- A lei não estabelece calibre ou potência, quando o caso for este.
- Sei disso, Raul – e tomou um gole dos grandes, do excelente vinho que estava sendo consumido.
A conversa amena terminou, Wladimir foi embora com a sua Lívia, enquanto o dono da casa ajudava à mulher a recolher os pratos e copos. Passava da meia-noite, e às nove Raul chegava ao escritório de sondagem de solo. Sua mulher, cansada, não foi exigente quando estavam deitados para dormir.
No dia seguinte, como de costume, Raul abriu o escritório e já encontrou lá seu melhor funcionário.
- Ligaram para o senhor, doutor Raul. Não quis deixar recado. Disse apenas que era uma velha amiga de colégio, e perguntou se o senhor estaria aqui às onze horas. Eu disse que normalmente estaria.
- Não falou nada além disso, Norberto?
- Não senhor. Ela disse que telefonaria outra vez.
Raul debruçou-se em cima de um estudo de um engenheiro que trabalhava para ele. Moço novo, mas de capacidade indiscutível. Leu o relatório atentamente, e sabia que Fernando, o autor do mesmo, não demoraria a chegar. Discutiriam o assunto juntos, pois afinal o terreno não era muito distante da praia, e o projeto do edifício, que constava de uma pasta, mostrava que o mesmo teria catorze andares. O solo tem que ser seguro, quando é assim. E a estrutura de sustentação muito bem feita.
Estava envolvido com seu estudo preliminar, quando o telefone da sua mesa tocou.
- Raul, meu querido amigo, é Maria Lúcia. Fomos colegas na faculdade, lembra?
Como não lembrar de Maria Lúcia? Bonitona, inteligente, sempre disposta a uma brincadeira, fosse ou não de bom gosto. Era uma mulher livre.
- Maria Lúcia? Deus do céu, têm anos que não sei de você. O que houve, mocinha?
- Este mocinha me encantou, Raul. Você sempre teve este hábito de chamar a gente. A mocinha aqui já passou dos quarenta há muito tempo, como você.
- Certo, menina. Mas qual a razão de estar me ligando? Alguma notícia?
- Podemos almoçar juntos, Raul? Vou precisar de você.
- Mas é lógico que podemos almoçar. Que tal um prato da Colombo, como nos tempos de estudante, quando ganhávamos algum dinheiro? Que hora prefere?
- Uma em ponto eu apareço. No segundo andar. Que tal um peru à brasileira, como nos velhos tempos?
- Lucia, já nem sei mais se existe o segundo andar da Colombo, muito menos este prato!
- Pois seja lá o que for, estarei lá a uma em ponto. Vai ser difícil reconhecer você? Está careca e barrigudo?
- Nem uma coisa nem outra, mocinha. Tirando uns fios brancos dos cabelos, continuo a mesma coisa.
- Estarei lá. Beijos, Raul.
- E eu? Vou reconhecer você com facilidade?
- Se não reconhecer, vou embora e procuro outro amigo! Nada, Raul, estou brincando. Não mudei muito.
Desligaram o telefone. Raul ficou pensando no que ela estaria precisando dele, mas não achou resposta.
Exatamente quinze minutos antes, estava no lugar marcado, tomando um cálice de vinho chileno. O clima ajudava muito. Não estava frio, mas a temperatura era muito agradável.
Quando Maria Lúcia chegou, foi logo reconhecida. A beleza dos seus traços não tinha desaparecido, e mantinha o corpo esbelto como sempre teve. Estava vestida sem os seus famosos jeans, envergava um modelo sóbrio, mas sem exageros. O vestido era abotoado, e a gola fechada. Cor castanha avermelhada, elegante.
Beijaram-se na face, como era natural e um longo abraço chamou a atenção dos freqüentadores...
Gentilmente, Raul puxou a cadeira para a mulher tão bela, e serviu uma taça de vinho.
- O que está acontecendo, Maria Lúcia?
- Eu adoro quando você me chama pelo nome todo!
- Muito bem, mocinha. O que está acontecendo?
- Vamos beber e comer pouco. Está acontecendo, Raul, que minha filha está internada por causa de drogas, o cretino do pai não toma providência nenhuma contra o safado do responsável. Preciso de você, Raul.
- E qual a razão disto, menina bonita?
- Sei que você trabalhou no serviço de informações. Deve ter sido um tempo duro...
- Quem te disse isto?
- Uma amiga minha tem um sobrinho, que você após examinar bem a vida dele achou que era um inocente servindo aos lobos.
- Este cara tem nome?
- Claro, mas prefiro não falar, se você não se incomoda. Ora, vai lá! Lengruber. Cláudio Lengruber.
- Não lembro...
- É sempre assim. Quem faz, não se lembra. Mas o ofendido ou agraciado sempre se lembra.
- Que quer que eu faça, Maria Lúcia?
- Que procure ele e peça para se afastar definitivamente da minha filha.
- Mas isto é trabalho da polícia, garota. Aliás, só com muita boa vontade isto se resolve.
- É exatamente por isso que procurei você. Sei do que é capaz.
Almoçaram com certa inquietude, abrandada pelo vinho. Raul não prometeu nada, mas sabia que o fato era mais do que comum. Um sobrinho seu, de apenas dezessete anos, morrera de overdose. A irmã, uma moça alegre, química de primeira ordem, conhecedora como poucos de jazz, está até hoje em profunda depressão.
Foi fácil Raul encontrar o canalha. Tatuado, cheio de gírias e com o corpo musculoso, fruto de horas de academia de ginástica e musculação, debochou feio.
- Vai te criar, velho de merda! Está querendo levar umas porradas, é?
Não tinha ninguém vendo. Raul não usou uma Wildey ou coisa semelhante. Usou mesmo um velho e bom trinta e dois cano longo, considerado a melhor arma de precisão do tipo comum. Um certeiro tiro no coração mandou o canalha para o lugar que já devia estar ocupando.
A partir deste dia, quem o conhece, chama-o de Dom Raul.