Vovó, nossa címplice!

Vovó, nossa cúmplice!

Naquela manhã, minha mãe nos chamou logo cedo, mas o frio não animava nossas pernas a saírem das camas, dos grossos lençóis e mais ainda, da preguiça que ainda nos dominava da noite anterior.

Já estávamos acostumados ao frio naquela época do ano em Moscou, mas naquele inverno de 1916, parecia que o gelo andava colado à nossas pernas, coitadas! Como tinha pernas grossas, o gelo do tempo parecia me aumentar uns 20 kg, e mais os casacos, gorros de lã no pescoço, galochas pesadas e tudo mais. A cada inverno parecia que engordávamos mais e mais; só com o peso das vestimentas. Na época, era uma adolescente sardenta e ruiva, “curiosidade” era meu sobrenome. Meus irmãos Karl e Kim, formavam comigo, um trio infernal, tanto na escola como em casa.

Meu pai trabalhava na construção da ferrovia Kiev-Moscou como engenheiro, o que nos assegurava uma posição privilegiada em relação a algumas famílias de nossas redondezas; e minha mãe, uma dona de casa exemplar.

Com muita saúde, éramos adolescentes de uma curiosidade extrema, o que nos empurrava para aventuras, às vezes, perigosas.

Meus irmãos eram mais velhos que eu, que do alto de meus 15 anos, adorava procurar o que fazer, caçar animais e “ver” o que tinham dentro, coitados.

Uma noite, já querendo deitar, meu irmão mais velho disse em voz baixinha “achei uma maneira de passarmos 3 dias na propriedade de vovó Ludovika e fazermos algo diferente”. Para nós, passar um dia que fosse na casa de nossa doce avó, era fazer uma viagem no tempo, era andar descalço no chão de terra fria, correr atrás das galinhas e gansos no quintal, tomar um banho de riacho e refazer as almas para enfrentar as aulas chatas da escola normal.

A idéia de meu irmão seria posta em prática logo após o almoço, assim que nosso pai levantasse da cadeira e fosse acender seu inseparável cachimbo.

_Pai, amanhã é o começo do descanso na escola, será que podemos, eu e meus irmãos, passar esses dias na casa de vovó Ludovika ?

Sair de casa não era um programa bem visto por meu pai, pois como estava trabalhando sem parar na ferrovia, não poderia nos “olhar de perto”, o que seria mais razoável. No entanto, ao ouvir aquilo, minha mãe se colocou ao lado da cadeira de balanço de papai, e disse:

_Frederich , meu querido marido, deixe que as crianças passem um dia na propriedade, que mal haveria?

Diante de quatro pares de olhos sedentos por clemência, meu pai não teve como negar e sentenciou com a autoridade daqueles dias:

_Como vocês têm o descanso escolar por 3 dias, podem ir, mas olhem, nada, nada de reclamação de sua avó, caso contrário, jamais voltarão lá!

Corremos para arrumar tudo com tanta alegria, que mais parecíamos presos das minas de carvão prestes a ver o sol! Meus pais eram muito cuidadosos, principalmente comigo, que já resplandecia uma beleza moderna e altiva para a época. Quem sabe, no fundo ,eles não estavam sentindo o que estava por vir?

Às 5h estávamos na estação de trem, com meu pai me segurando pelo braço, como se ainda fosse uma criancinha, e nossos bilhetes na outra mão, segurando de forma tão segura, que o papel parecia bravamente lutar de um estrangulamento. A viagem transcorreu calma, e a paisagem até a propriedade de nossa avó, era divina, fascinante mesmo! Pinheiros cobriam as colinas nevadas e o cenário ia ficando mais bonito a medida que nos afastávamos da cidade. Ao longo do caminho, avistávamos muitos animais, alces e cervos, cavalos selvagens, porcos e tudo que uma floresta tinha pra nos brindar com o quesito beleza natural.

Parceria que a propriedade de vovó tinha parado no tempo, pois tudo estava do mesmo modo que havíamos deixado no ano anterior. Ao nos ver no grande portão de madeira, vovó nos abraçou ao mesmo tempo e quase caímos todos na grama gelada. Que delícia!

A propriedade era um capítulo à parte de nossa viagem, pois era muito especial mesmo, a casa..belíssima, com candelabros antigos e cortinas elegantes na sala,lareira e várias poltronas.

Na sala de jantar, nos aguardava a grande surpresa do dia: uma mesa enorme, repleta com tudo que gostávamos, mas que só nossa avó sabia fazer com perfeição! Para começar, ela nos deliciava com sua famosa torta de milho, colhidos por ela mesma, o que fazia questão de frisar a cada colherada nossa; depois vinham a sopa de beterraba, a vitela com batatas assadas no forno à lenha, e quando pensávamos que ela já nos tinha brindado com o mais saboroso almoço, ela entrava radiosamente com a divina torta gelada de amoras...poxa !!! Como ela conseguia fazer tudo sozinha? E tão saboroso? Poderíamos morrer com mais de 100 anos, mas o gosto daquela comida, jamais seria esquecido. A sua comida era recheada com tudo que há de mais sagrado numa avó: amor!

A nossa tarde seria brindada com estórias russas tradicionais, que ouvíamos com os olhos, também! Era engraçado porque, nossa mãe contava as mesmas estórias, mas não como vovó Ludovika, ela era demais!

Dormimos e logo cedinho, nosso irmão mais velho, o Karl, nos deu uma sentença: “escutem, aqui perto da propriedade tem uma caverna, lembram-se?” , falava ele, nos fitando com ânsia. “Pois bem, vamos explorá-la até o fim, até quando a luz não mais entrar, até onde der coragem”. Fitei Kim e começamos a sentir as pernas tremerem em sinal de medo simultâneo! Porque ele não escolhia algo mais “ameno” para nossa passagem pela propriedade? Neste momento, lembrei-me das palavras e do olhar severo de nosso pai..oh!

Bem, como não queríamos dizer o que realmente iríamos fazer, resolvemos dizer a vovó que daríamos uma volta e caçaríamos alguns sapos, então, ela rio. Lá fomos nós: lanterna na mão, casacos de frio, botas, redes, e ... pouca coragem! Meu irmão mais velho nos fitava, parecendo nos desafiar ao perigo. Entramos na mata, passamos um córrego gelado, e avistamos a tal caverna.

Fui logo dizendo que não queria entrar na caverna, e meus irmãos deram uma de corajosos e foram. Sentei numa pedra e acendi uma figueira. Esperei. Esperei. Coisa estranha, cadê aquela dupla de arqueólogos fajutos? Imaginei que já deveria estar ali a mais de uma hora, e resolvi ver o que havia acontecido.

Peguei uma lanterna e fui entrando, devagar... “Karl??”...”Kim??”, “onde vocês estão,meninos?” Passei alguns perigos ali dentro: aranhas de todos os tamanhos passavam por mim, com “olhar” desafiador, largatas, largatos e bichos que nem sabia o que eram; talvez uma cobra, um vulto que vi se arrastando. Por fim, ao virar uma “encruzilhada” dentro da caverna principal, comecei a ouvir vozes..vozes familiares! Não, não eram vozes, eram risadas! Risadas? De quem?

Olhando de frente, apurei os olhos e não pude me conter com o que vi: minha avó esparramada no chão gelado, perto de uma fogueira, contando estórias pra os meninos, que caíam na risada quando me aproximei!

Fui tomada com uma mistura de raiva e surpresa, medo e alegria, não sei bem. Só sei que minha avó nos pregou uma lição: jamais mentir para as pessoas que amamos.

Até hoje, velha, cansada e viúva, sempre fecho os olhos e vejo minha avó querida pendurando nossas roupas no varal, tirando a vitela do forno, amarrando suas tranças. Que delícia poder relembrar coisas boas, que delícia ter tido irmãos, cúmplices de aventuras, como nossa avó Ludovika!

Simone Lessa
Enviado por Simone Lessa em 19/12/2007
Reeditado em 08/10/2009
Código do texto: T785036
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