Cemiteriedade

Estava muito gripada. Tosse, coriza, corpo pesado, depressão. Acontece que o pai de uma grande amiga havia falecido, Sr. Timóteo, e eu não poderia deixar de ir ao velório. Era uma manhã de sábado.

Tomei um bom banho para tirar aquele ranço da gripe, aprontei minha bolsa com água, lenços para as secreções e xarope antitussígeno, caso uma crise de tosse me pegasse de sopetão. E, claro, minha manteiga de cacau.

Era um dia de missão. Chamo assim as tarefas que preciso fazer, mas que não tenho vontade. Geralmente minhas missões envolvem pessoas que tenho forte apreço.

Fiquei pronta e chamei um Uber.

O cemitério era perto de casa, então em dez minutos estava lá.

Meu ar era de serenidade. Não, não era de serenidade, era de cemiteriedade. É um sentimento muito particular que tenho. O sentimento de cemiteriedade é aquele mais ou menos assim: a vida pode estar uma bela droga, mas eu AINDA estou viva. É como sambar diante dos túmulos ostentando uma vida na cidade dos mortos.

Então, como ia dizendo, ao chegar, logo fui recebida por minha amiga. Ela me recebeu como sempre fez, sorridente, feliz com minha presença, estava bem.

Estava tão bem, posso afirmar com certeza, que seu estado era quase incompatível com o evento. O processo de adoecimento que Timóteo tinha passado durou algum tempo e minha amiga já vinha se preparando para aquela perda.

As pessoas foram chegando. Algumas eu conhecia de festas na casa da minha amiga. O próprio Timóteo conheci pouco tempo antes de seu enterro. Era um senhor bem magro, dentes grandes e amarelados. Já estava cansado. Lembro daquela festa em que estávamos na sacadinha. Ele em sua cadeira de rodas, com um cobertor no colo, em um canto a resmungar coisas que só ele ouvia e compreendia. Eu sozinha na festa observando tudo, comendo o maravilhoso bolo salgado da filha mais velha de Timóteo. Estou sempre assim, sozinha na companhia de amigos.

As festas eram boas, mas aquele velório...não poderia deixar a vida passar sem compartilhar o que ocorreu naquele dia.

Ali no entra e sai de parentes e amigos conheci uma amiga de infância da minha amiga. Conversamos bastante, ela me contou sobre sua insuportável hérnia de disco e sobre seus filhos. Hora ou outra minha amiga passava para relembrar algum fato da infância com aquela mulher. A conversa fluiu, precisava de alguém para me sentir mais à vontade no evento. Mas logo me senti sufocada e fui dar um gole da minha água na parte externa do galpão de velórios. O sentimento de cemiteriedade estava pairando no ar. É muito bom sentí-lo. Tomei minha água, chequei as mensagens do celular e parei para observar uma parente de minha amiga. Sabe quando uma pessoa não te conhece muito bem, mas você já ouviu várias histórias sobre ela? Bom, era uma moça muito bonita que estava vivenciando um processo de separação. Eu sabia da dor que ela vinha carregando e o ex marido estava lá também com a nova namorada, dez anos mais nova que ela. O sentimento de cemiteriedade cessou nesse momento e, assim, fui sentir um pouco da dor dessa moça. Decerto ela queria estar vivenciando a despedida ao lado do ex marido e filho, mas estava substituída em seu antigo posto, por isso precisava se contentar com ela mesma. Estava sentada em um banco desses de concreto, perto de mim, cara de tristeza e preocupação. Olhei fixamente para ela, como quem diz: "ei! estou aqui também". Ela nem me notou. Bom, cada qual com sua dor.

Entrei novamente porque haveria uma cerimônia antes do fechamento do caixão. Havia dois músicos, eles tocaram músicas muito bonitas, das quais não me recordo o nome. Após as músicas um deles falou palavras também muito bonitas sobre quem tinha sido em vida o homem deitado. Depois disse algumas palavras sobre estar com as pessoas no hoje, pois a vida é efêmera e assim convidou todos os presentes a se abraçarem. Na hora olhei para o lado e vi uma mulher estranha a mim, ela também se virou para mim. Nos abraçamos como se fôssemos velhas amigas, foi emocionante e ao mesmo tempo engraçado. Senti vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Também ao ouvir aquelas palavras me emocionei ao ver os parentes de Timóteo abraçados, assistindo a cerimônia de despedida.

Depois chegou uma colega que havia trabalhado comigo, alguém que admiro muito e que me quer bem. Conversamos, desabafei sobre os problemas que estava enfrentando. O caixão saiu e as pessoas foram andando atrás em cortejo. Fomos lá atrás do pessoal, seguindo a marcha para o túmulo. Fui contando das coisas que estavam me fazendo mal, ela me acolheu por todo o caminho. O céu estava bem azul, havia árvores e até tucanos no cemitério. A sensação de cemiteriedade foi crescendo, impulsionada pela força que aquela colega me dava durante o percurso.

A pequena multidão chegou ao túmulo. Enterramos Timóteo,

a missão estava cumprida.

Observadora de mim
Enviado por Observadora de mim em 24/07/2023
Reeditado em 31/08/2023
Código do texto: T7845114
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.