Mercado Central (premiado em concurso nacional da SOBRAMES)
“Mercado Central”
O relógio digital do meu filho estragou, disseram que era o display. Tinha que trocar. Mas ficaram enrolando o menino e não chegava a tal peça. Recomendaram-me o centro de Goiânia. Fui de moto, Rua 3. Nada de achar as antigas relojoarias, ou algo que o valha. Estacionei perto do Mercado Central. Perguntei e me disseram que lá se conserta relógios.
Arrisquei. Primeira surpresa, o chão é limpo. Segunda? O cheiro. Acostumado com o óleo diesel das ruas, com a assepsia artificial dos hospitais –sou médico- aromas outrora vividos vieram com força. Não soube bem analisar o que era. Mas era gostoso.
Deixando de lado essa passageira confusão dos sentidos vi a banca. Entreguei o objeto sem dizer palavra. O senhor o pegou, colocou uns óculos com lentes e foi desmontando-o na minha frente sem cerimônias. Em poucos segundos o tal display acendeu e os números digitais estavam à vista. Fiquei surpreso e feliz.
- E aí ficou pronto? Com a minha urbana pressa.
- Não. Está muito sujo, tem que banhar em óleo, limpar bem. Leva umas duas horas.
Diante de tamanha sabedoria. Calei-me.
- E que horas posso vir pegar?
- As cinco.
Vendo que seria impossível retornar hoje ainda, mentalmente pensei em voltar no outro dia pela manhã. Mas diante da eficiência do sujeito e sua habilidade inata ao lidar com o presente do meu filho, resolvi puxar conversa:
- Há quanto tempo conserta relógios?
- Há 36 anos.
- E gosta de quais?
- Dos baratos ou dos caros?
Citou-me três marcas conhecidas e depois mais três bem chiques, incluindo o Bulova, e o Rolex. Coisa de novo rico. Não me satisfiz inteiramente. Aí então, diante de tão vasto conhecimento de causa, resolvi provocá-lo utilizando minha memória e a coleção paterna.
- E o Patek Philippe? O Vacheron-Constantin? E o Jaeger LeCoultre?
Seus olhos brilharam. Quase em lágrimas ele retrucou.
- Aí não é relógio, é jóia. Outro dia um advogado trouxe um relógio de pulso e consertei. Ele agradou de mim e ficou ligando para saber se eu era de confiança. Sabe, eu cheguei do interior de Minas. O dono da banca disse que sim. Ele trouxe um Patek de bolso. Daqueles grandes. Consertei em quinze minutos e disse que entregaria somente em dois dias. Só para ficar limpando e namorando o mecanismo. Coisa fina. Não se faz mais. Só homem de classe usa um desses.
Percebendo a minha entonação de voz, ou por um instinto oculto dos homens simples e sábios ele falou.
- Seu pai deve ter mais de 80 anos, pois o Jaeger LeCoultre parou de fabricar a quarenta anos. E só alguém passado dos quarenta e com dinheiro pode comprar uma preciosidade dessas... Faz as contas...
Então foi a vez de meus olhos se encherem d’água ao ouvir o nome do relógio preferido do meu pai ser pronunciado corretamente. A César o que é de César. Nem pude dizer que papai morreu em 2001 e que só retirava a tal peça para banhar-se. Desconversei.
- É o predileto dele. Onde tem pingo?
- Pingo? Aquele docinho de Minas? O que vem na palha? Olha, aqui tem muito, mas se coloca no plástico pra ficar mais prático. Logo ali atrás.
Peguei a nota, saí encantado com a fineza e competência. Examinou, deu o diagnóstico, e hora para pegar o serviço pronto. Perfeito. Além da delicadeza inerente de sua dedicação.
Bem; de casaco de couro, rabo de cavalo e gravata, qualquer um chama atenção. Um homem ao fundo me chamou.
- Hei, você, o cabeludo. Vem cá.
Tranqüilo, virei e dirigi-me a ele e seus amigos. Todos tomavam pinga. Eram umas onze e meia da manhã.
- Fala, amigo.
- Aquela moto é sua? É uma Harley, né?
- É. Comprei em 98, só ando nela. Não gosto de carro.
- Cara, se eu fosse novo igual você, faria o mesmo. Que beleza. Meu pai tinha uma Knucklehead de 47, a última delas. Andei muito na garupa dele quando menino.
Ai, meu Deus. Já falaram do relógio, agora, motos! Meu coração palpitou e vi claramente que hoje seria um daqueles dias mágicos em que tudo está envolto por uma fumaça de saudades e nostalgia.
- Toma aqui uma conosco. Quer da branca ou da amarela?
Eu, que sou abstêmio, e que a única dose é meia taça de vinho tinto no almoço, topei.
- Pode colocar.
E me pôs quase que meio copo. Daqueles de geléia de mocotó. E para não fazer feio diante da torcida que certamente gostou da figura exótica aqui. Virei. O mundo rodou. Identifiquei de imediato o cheiro de bucha vegetal. Dos doces de leite da minha madrinha. E um sem número de lembranças de décadas atrás. O agridoce do tempo que não volta.
Joguei conversa fora uma penca de minutos. O assunto de sempre. Mulheres, futebol e em vez de carros, motos. Risadas. Tapinhas no ombro. Ao passar os transeuntes com certeza achariam que eram companheiros seculares ao se encontrem mais uma vez. Enturmei. Na hora de despedir foi difícil. Dificultoso, diria o meu interlocutor.
- Ou, volta mais.
- Pode deixar.
- Vou te falar, eu tenho 46 anos. Minha idade não permite ser magro e nem andar de moto. Mas depois deixa eu dar uma voltinha?
Nunca poderia dizer que completo 41 este ano. E que absolutamente ninguém já dirigiu minha chopper. Mas com a pinga na idéia só me restou a frase:
- Eu volto aqui amanhã. E o pingo?
- Que pingo?
- O que eu ia comprar...
- Você não falou nada.
- Esqueci, agora é tarde, já vou. Almoço, né.
Acelerei firme, saí devagar. Um breve telefonema, bem humorado. Só depois lembrei que falei demais. Quando se bebe assim, sem precisão, dá vontade é de acasalar.
Chegando em casa minha esposa virou o rosto. O filho disse: “Que bafo!” e a filha “Eeeeeeeca!”. A empregada serviu o prato solenemente e somente a cadelinha me lambeu com afeto. Vai ver eu só faço sucesso mesmo é com os antigos, os cachaceiros e as cachorras... Mas a poesia do mundo não sai de dentro de mim. Ela me rodeia e vivo nela.
JB Alencastro