Autófago (Parte I)

Deitava-se sob as marcas do açoite de mais uma noite não dormida, enquanto surgia a manhã mais nova, feito uma notícia grave.

Ele tentaria pela última vez recompor o calendário rasgado em pedaços indiferentes. Eram meses, dias cruzados, finais de velhos e novos anos, toda desordem praticada sobre o mesmo colchão há perder-se pelo tempo, já manchado de um mofo antigo, migalhas, de se contorcer os pés gelados pelo inverno, já que o único cobertor havia também partido com ela.

Evitou sempre a palavra fugir, que trouxesse talvez um excesso de força, mas que correu, correu.

Esqueceu-se. Assustou-se.

Enganou-se. Não sabia.

O que houvesse feito coube a ela e a mais ninguém conhecido.

Algum dia ele simplesmente abriu os olhos e pela janela viu que lá ia.

E tarde, manhã, tornaram-se imperceptíveis, nada que indicasse uma hora precisa de se levantar e adaptar as velhas lamentações ao tempo morto pela última insônia.

Vestiu a calça rasgada, que jazia ainda fria seus anos usados na cadeira, manchada do que se dizia história, exatamente como ela amargamente enojou naqueles meses, e foi por isso que ali ficou.

Os restos foram todos seus.

Prato sobrado de comida na mesa, velharias pela sala, falta do que pensar.

Deveria ela saber que cada pequeno asco seu continuava vigente, concreto, saudável?

Não, não deveria merda nenhuma - convencia-se diariamente.

Encarou o espelho com a habitual indiferença aos fios prateados perdidos no emaranhado da barba, sabendo que ela quis segurá-lo a força sempre um pouco mais jovem, enquanto ele envelhecia de propósito.

Viu-se ainda orgulhoso pelos pés cortados de pisar o vidro do relógio quebrado naquela última noite. Os cacos estavam ainda lá, sangrados no canto do quarto.

Já não funcionava mesmo.

Cicatriz vaidosa aquela.

Enfiou a mão pelos bolsos da jaqueta de tantas outras geladas estações, mas o cigarro havia também partido com ela, o cobertor, as noites de sono.

Atualizou então as necessidades de vida.

Fumar.

Comer, talvez.

Parou antes por algumas cartas que se acumulavam passadas por baixo da porta. Notícias de perto. Uma ínfima parte de suas dívidas que se escondiam por dentro daqueles envelopes.

Por fora, seu nome por completo - leu sem voz alguma.

Poderia certamente ter pensado que, como aquelas correspondências o chamavam, quem quer que fosse o chamava, com o mesmo calor daquelas contas de gás ou telefone, que nunca lhe foi gravado um apelido, sufixos diminutos, aumentados, pedaços de nome, que nunca permitiu tais golpes de afeto.

Mas não foi.

Pela cabeça não passou nada.

Apenas leu e voou cada uma pelo chão.

Ao deixar o apartamento ouviu claro o falatório que vinha do corredor. Sabia sim de quem eram aquelas vozes. Um casal vizinho de andar que conhecia apenas pelos urros, grunhidos, gemidos, histerias por triunfos estranhos que atravessavam as paredes diariamente.

Os rostos eram raros, arredios como aqueles risos impostos e perturbados, achando tanta graça onde residiu sempre outro tipo de emoção qualquer.

Já passavam quase sem notá-lo, até que o homem voltou alguns passos, abriu um palmo da porta metálica que guardava todo o lixo daquele acúmulo de casas, e apoiou-lhe uma das mãos sobre o ombro.

Sente este cheiro?

E apontou porta adentro.

Parece o lixo. É o corpo da normalidade que envelheceu, entupiu-se em remédios, deitou-se, e agora se apodrece por dentro destas latas.

Fechou a porta, abaixou a cabeça feito um lamento, uma carência, e acompanhou a mulher lances de escada abaixo.

Aquele cara até poderia ter razão - pensou.

Sentiu ali que o corpo esquecido e putrefato de uma possível normalidade, poderia expelir gases quase analgésicos, que impediam qualquer desejo que fosse além daquilo que a visão pudesse alcançar, para além de toda esta casamata, de segurança presumida.

Por isso talvez nunca quis saber da vida de estrada nenhuma, nunca quis saber para onde ia o céu vestido de cinza para depois daqueles prédios intermináveis.

Não.

Como aconteceu naquela outra manhã, quando ela dobrou a avenida, e logo após a ponte já não soube mais seu nome, sua voz, ou o formato de seus braços. Desistiu como poucos de fazer contas sobre qualquer singular minuto que pudesse considerar-se futuro.

Saiu para sentar então no mesmo banco azul, rachado e sem encosto, da mesma padaria de sempre, evitando abandonar a quadra do edifício.

Um copo regado do mesmo conhaque, pão, manteiga, e o mesmo desprezo ao relógio translúcido de gordura pendurado sobre a chapa.

Tomou logo tudo das mãos do atendente antes que ouvisse sua voz. Não queria saber seu sotaque para não ter ideia qualquer de onde vinha.

Foda-se a opinião dele se o frio é bom ou ruim, se lavou as mãos para tocar minha comida – pensou.

Menos ainda suportaria sentir seu hálito.

E entrou também o casal de vizinhos.

Em meio às rotinas e aflições pela calçada, vinham distribuindo sorrisos limpos, impessoais, abraços, um dia belo, apertavam-se as mãos e beijavam-se os rostos, sem distinções.

Quase nada sabia sobre eles.

Mas segundo o vento que corria pelos corredores, mantinham-se dos furtos levados pelo cara ao fim das tardes, e dos pacientes que se trepavam com a mulher durante o dia.

Até poderia, seria certamente mais fácil, mas não queria ser levado por aqueles enganos. Teve pela vida modos não tão atípicos, alguma coisa lá do nascimento, de enxergar as facas por trás de dentes muito expostos, de saber bem sobre o esconderijo da alma atrás do corpo, e saber que realidade, desta que se quer despida, descascada, desmascarada, seria coisa mesmo só de backstage.

E assim se equilibrava, sempre por meio do que dizia suas trocas com o mundo, ainda sentindo a leveza do pouco que recebia. Menos do que escolheria como justo. Mas não foi feito vingativo, já que não saía às ruas devolvendo pelo ar seus distratos, seus vínculos incompreendidos, ingratidões, ou outros desamparos que chamava de meras doenças baratas, infantis.

O que podia oferecer aos últimos meses era apenas seu ceticismo.

Esvaziar-se de qualquer crença pelo dinheiro gasto e pelo dinheiro recebido apenas como despertador de esperanças, pelas orações prestadas como unguento de curar solidão, pela fúria dos que correm para todos os lados espremendo qualquer pedaço de concreto com possibilidade de jorrar algum sustento.

Apertou os olhos para notar que o sol estava alto, mas havia ainda assim pela rua sombras incrivelmente maiores que as pessoas. Muito maiores do que o ângulo do sol poderia pintá-las àquela hora. Estranhou-se já que apesar dos olhos moídos pelas muitas noites que não dormia, sentia-se lúcido.

Completamente lúcido.

Teria sido criado, neste mundo de sombras enormes, um deus com tal perfeição a ponto de cometer também erros banais, como de cálculos?

Seria uma bobagem entre casas centesimais que conflitou o caos da evolução, a saúde do profano?

Tudo era defeito.

Mas chegou-se deste escambo injusto, do qual só se perdia. Tudo na rua parecia ter uma utilidade infinita, que não caberia no espaço lacrado e inservível onde cumpria sua existência.

Saiu da padaria contando pela calçada os passos do caminho inverso que ela percorreu naquela outra manhã.

Seria injusto dizer que não tentou.

Fez quase o possível para que a relação fosse feita só de inversos, o substrato para que sobrevivesse plausível, menos absurda. Mas os passos eram sempre teimosos em se trombar.

Pisavam-se, incessantes.

Passando pela banca de jornais lembrou-se que pôde ainda ver pela janela quando ela correu, tropeçou na prateleira das revistas, chutou livros, maços de cigarros, gritou com o velho jornaleiro e tudo que voava pelo ar, até desaparecer de uma vez por sempre.

Lembrou-se que há tempos não lhe interessavam mais as notícias que voavam daquela papelada, e o incomodava bem pouco o que acontecia em todo aquele centro de cidade sufocante, de caos aglomerado.

Mas interessaram alguns quadros a venda nos fundos da banca. Entre poucas coisas nessa vida, claro, de uma forma bem privada, sentia atração pelas artes, mais que por qualquer forma de ciência.

Mulheres cansadas, mendigos em azul melancolia, arlequim, tudo mais ou menos reproduzido de Picasso.

Pensou como artistas gostavam de arlequins!

Aquele era apenas um garoto, vestindo losangos amarelos e azuis, de expressão parada, quase pensativo, mas que jorrava pela moldura uma atroz inocência, coisa há muito tempo já extinta de suas crenças.

Mas o que importava isso naqueles dias?

Que sentido faria ainda seu desprezo pelas cores vivas?

Pagou pelo quadro e evitou por ora qualquer autoexplicação.

Marcos Eduardo Penteado
Enviado por Marcos Eduardo Penteado em 20/07/2023
Reeditado em 08/08/2023
Código do texto: T7841746
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