Autófago (Parte II)

Seguiu o caminho de passos pelo avesso, pela contra-caminhada, levando agora de mãos dadas aquele garoto vestido de arlequim.

Apontou para o mercado, para o eletricista pendurado no poste, mostrou a padaria, correu entre os pombos comendo restos de comida jogados dos velhos. Ou tenha talvez imaginado tudo isto. Em uma cidade como aquela não havia o que se estranhar ou se importar, nem nada.

Já no apartamento percebeu que os vizinhos de andar também haviam retornado.

Houve um grito.

Quebrou-se um vaso.

Copo, alguma coisa de vidro.

Um audível ranger de dentes.

Aquele era o tom habitual que conhecia do casal.

Lembrou-se da frase que ouviu pelo homem horas atrás, pensou, normalidade nunca foi assunto para crianças, e puxou o Arlequim para dentro, que parecia agora um pouco assustado. Com a orelha colada na porta ouviu o estalo do tapa que acertou a cara da mulher.

Mordeu a minha mão, louca!

Um tapa no outro lado oferecido em um provável contragosto.

Grito.

Grito.

Pela pele, pelos poros, pelos ossos da cara.

Um som seco e opaco, indefinido, forçou finalmente o silêncio. Mas era aquele o silêncio sucessor das grandes tragédias.

Ouviu apenas os passos embriagados e apressados do cara na curva para a escada.

Vazava ainda um choro mole, baixo, persistente do apartamento ao lado enquanto objetos batiam contra a parede e se quebravam pelo chão.

Abriu um pouco da porta e a mulher estava lá jogada entre a cozinha e o corredor.

Gritava incontáveis sugestões ao diabo para que arrastasse aquele homem e todas as suas mesquinharias embora, e logo em seguida oferecia o próprio espírito para que o trouxesse de volta.

Espalhados estilhaços de uma garrafa rotulada de cachaça, faca, sapatos, roupas, e um dente recém-amputado, ainda úmido de saliva, preso a um pedaço bem pequeno de honra ainda morna.

Empurrava com os pés os escombros daquela guerrilha antiga quando percebeu entre as roupas um pedaço de pano grosso que o estranhou.

Não poderia ser.

Era aquele o seu velho cobertor?

Olhou para os lados, e enquanto a mulher se acabava em seus lamentos, trouxe para dentro. O cheiro era aceitável e as cores extremamente parecidas com o seu.

Não, não poderia ser.

Viu bem quando ela partiu aquela manhã com o cobertor apoiado nas costas.

Foi isto.

Procurava uma caixa de fósforos quando ela chegou com um silêncio pregado na cara.

Acendeu o cigarro.

Meu emprego!

Ela respondeu a pergunta nenhuma.

Perdi a porra do meu emprego!

Ele deu uma longa tragada e voltou-se ao programa de calouros que chiava na televisão.

Ela tomou a garrafa de vinho nas mãos, encheu a boca e cuspiu-lhe a cara toda. Levantou o relógio da parede, uma antiguidade que ele trouxe de família, e quebrou no chão com toda a força que encontrou sabe-se lá em quais músculos.

Cansaram-se ambos.

Secou a barba do vinho com a manga da camisa e foi para o quarto pisando os cacos do relógio quebrado.

Ela embrulhava no cobertor seus sapatos, cigarros e alguns livros, tudo o que pudesse ser útil em uma possível e arriscada sobrevida.

Ele adormeceu.

Pelo bem que pôde se lembrar, foi aquela a última noite em que dormiu.

A última noite.

Quem sempre condenou as insônias mais prosaicas, alimentadas de café, cocaína, sirenes, filhos, patrões...

Da porta para dentro, tudo que possuía cercava-se apenas de si mesmo, tudo exalava o mesmo cheiro.

A comida da geladeira tinha o mesmo cheiro das roupas sujas, que cheiravam como os livros na estante, que fediam como o banheiro.

Enchia-se a cada minuto deste tédio sensorial.

Foi até a janela assistir ao fim da tarde que já começava a escoar o movimento da rua. Todas as noites, quando o mercado fechava, uma mulher alta assumia com seus longos cabelos vermelhos a propriedade da esquina.

Tudo ali lhe pertencia.

Aquele pedaço de noite, alguns sacos de lixo e os cachorros que lambiam o chorume ao redor. Ainda ontem uma travesti tentou concorrer naquele ponto, e ficou admirando pela janela a imponência com que aquela amazona de cinta-liga e canivete defendeu as fronteiras de seu reino, da esquina ao fim do mercado fechado.

Os carros paravam no cruzamento e iam-se madrugada adentro.

Passado um rapto efêmero e insano a devolviam no mesmo lugar.

Corriam para suas casas pois tinham que beijar a testa dos filhos na porta do colégio ainda antes do trabalho.

Alguma mulher voltaria para casa pelas pontas dos pés.

Algum filho se arrependeria pelo chão do quarto.

As pessoas realmente se igualavam pelo poder daquelas madrugadas.

Nunca mais ligou a televisão, nada tinha a importância daquele espetáculo urbano, da beleza daquela mulher se equilibrando pelo salto, pelas pedras das calçadas, pelos gritos dos jovens.

Deu um gole no conhaque e o gosto do autoexílio veio arranhar-lhe a garganta.

O quadro com o arlequim vestido de losangos amarelos e azuis estava ainda lá sobre o sofá, iluminado pela luz do poste.

Havia uma lenda lida algum dia, de um arlequim que escondia sua ingenuidade pelos becos de Veneza para se infiltrar nos bailes da alta gala. Tirava para todas as danças as esposas encantoadas, ignoradas, enquanto os chefes da burguesia negociavam, confabulavam, e afinavam os bigodes nas rodas masculinas, todos cegos às expressões de um inédito prazer daquelas que se percebiam finalmente mulheres. O arlequim dormia sempre tarde, com um riso na cara que só não era maior que o dos próprios burgueses, que gargalhavam da pobreza daquele vagabundo.

Cresceu àquela hora certa inveja do garoto sentado na moldura.

Até perceber então que poderia reinventar-se também, pensou por uma questão de urgência, como algum arlequim de Marivaux, claro, não tão polido pelo amor.

Como se usasse também aquelas vestes, invertido em artista e personagem, partiu em saltos pelas escadas, incorporado de todos os atributos folclóricos, em direção àquela belíssima mulher – ainda que beleza mesmo não enxergasse alguma.

Era tudo simples invenção.

Ou reinvenção.

Tudo mais fácil dentro de uma fantasia.

E o que levou para casa tinha cheiro, som, textura, alma, maiores que o próprio sexo, maior que qualquer prática barata de seus fins profissionais. Uma terceira presença naquele apartamento valeria sim por cada centavo da merreca que ela guardou na bolsa.

Compartilhou uma refeição que havia guardado da padaria, em uma mesa nunca antes posta, com toalhas quase limpas e talheres bem arrumados. Ficou em pé, fumando em silêncio, enquanto aquele rosto fundo devorava o resto da comida. Pediu que ela lavasse os pratos, limpasse o suor da testa com os próprios punhos, apenas para observá-la no exercício daquelas domesticagens, como se estivesse ali sem qualquer sacrifício, sem qualquer espera.

Era tarde, e foi melhor mandar o arlequim moleque apartamento adentro para dedicar aquele tempo somente à senhorita de cabelos de fogo e mãos já limpas do sangue escorrido outra noite da travesti.

Não caberia aqui a intensidade necessária ao relato do ocorrido naqueles frenéticos minutos, quando nada existiu, consciência, paredes, a cidade ao redor, sequer algum resquício do que dizem civilização, apenas animais primitivos quase convencidos de uma pretensa humanidade.

Assim, exausto, embebido em suor, deu um gole no conhaque, acendeu um cigarro e foi até a janela. A esquina do mercado estava mais escura que o normal, e mais silenciosa. Os carros percebiam, sim, faltava algo ali, ela que estava em seu sofá, largada, vitimada, nua, com a respiração alterada de quem já começava a adormecer.

Mas que direito tinha de interferir naquela paisagem?

Poderia ser apenas o anúncio manifesto de seu eterno apreço pelo não durável, pela inestimável única vista. Juntou as roupas pelo chão, balançou a mulher pelos ombros e fez com que partisse antes que tivesse que gastar mais palavras que dinheiro.

Um jantar com aquela mulher.

Um castigo ao garoto que não quis dormir mais cedo.

Atravessou horas muito próximas do que julgava ser uma vida familiar protocolada, parnasiana, ainda com toda a plenitude daquilo que não tem passado, nem provavelmente futuro.

Pronto.

Estava enfim descoberto, ou resolvido.

A vida seria então baseada neste hábito.

Esta química da qual se torna dependente a cada tragada do que se vê pela janela, cada inalada de um drama – desde que televisivamente pobre -, cada gota de saliva alheia permeada pela pele.

Marcos Eduardo Penteado
Enviado por Marcos Eduardo Penteado em 20/07/2023
Código do texto: T7841745
Classificação de conteúdo: seguro