Autófago (Parte III)

Acreditou-se àquela hora também parte de toda esta repetição, deste eterno ensaio do comportamento alheio.

Acreditou-se então já refeito credor de algumas horas de sono, de leve honestidade.

Mas por um tédio do acaso não o era.

Deitou-se envelhecido, ainda cedo, descrente das coisas deste mundo, sob a promessa da noite que o velou de olhos bem abertos.

Não perdeu um único minuto desacordado.

A vida ainda lhe devia as mesmas paciências de cada dia.

Certo, não foi fácil o dia que se seguiu, com a insuficiência dos atos praticados na noite anterior pregada firmemente nas olheiras, mostradas à janela, certificado de que tudo não passou de um simples passo, que seguiria outro passo. E outro. Atrás do exato mesmo lugar.

O próprio apartamento o sufocava.

Cada pedaço de móvel, objeto, canto de poeira.

Restou pensar que poderia se livrar do peso de seu sufoco através da janela.

Mas não seria o vazio a lhe devolver o ar que nunca teve.

Atiraria primeiro o copo grudado com dois dedos do vinho barato de alguma noite, ou o cinzeiro de pedra transbordando o lixo dos cigarros fumados, ou o pobre Arlequim de Picasso.

Mas eram aquelas pretensões de algoz, que exigiam algo realmente ofensivo, talvez a televisão.

Faltava-lhe apenas o alvo.

Não serviria aquele que vinha da esquina em terno riscado e pasta na mão, ou a mendicância atrás dos carros chorando suas migalhas. Alvejaria o mais trivial dos cotidianos.

Queria, em seu limite, calças jeans e camiseta. Como aquele que deixava o açougue com as compras embrulhadas em jornais para tomar um táxi.

Fosse talvez algum trabalhador voluntário, ambientalista, doador de sangue, ou qualquer um que lhe aumentasse na consciência o peso da pena.

O erro não seria uma possibilidade.

Se o atingisse na cabeça, a culpa pela subtração daquela vida certamente lhe faria companhia pelo que restasse da sua.

Viveria de correntes arrastadas pelo vácuo entre o inconsciente e o premeditado. Abdicaria da própria leveza, sua maior esposa, para dedicar-se exclusivamente aos sacrifícios fiéis desta nova inquilina.

Jamais estaria só novamente.

Seria um irrevogável desapontamento ser descoberto por qualquer humano. As reprimendas legais não seriam tão severamente justas quanto suas próprias autofágicas.

Deus talvez o compreendesse.

Teria que esconder melhor suas confissões para evitar algum possível perdão.

Estava já decidida a imolação.

Transpirava.

Ofegava pela gola da camisa.

A inocência do garoto vestido de arlequim havia desaparecido. Estava ali sentado agora um garoto maduro, de olhos aflitos. Pensou que se deixasse aquela moldura seria para segurar-lhe ambos os braços.

Viu-se já estendido para aquele sacrifício, tremendo, temendo, a ouvir pelo ar:

Não estendas a tua mão sobre o mancebo, e não lhe faças nada.

Veio então a sombra da própria inocência.

Havia se ajoelhado em algumas missas quando criança. Começou a procurar pelos anjos que lhe gritavam aquele familiar apelo.

Estariam já provadas suas intenções?

Não houvesse talvez a necessidade do derramamento de sangue algum para demonstrar tudo o que sentia sobre o mundo que corria pelo lado de fora, ou o que deveria ser moralmente feito, ou desfeito, diante daquele estúpido momento?

Um súbito e raro assalto de horror próprio, e os fatos faleceram de fraqueza dentro de sua realidade particular.

Lamentou apenas a má sorte do alvo absolvido, que saiu de casa obrigado a oferecer sua confiança para estranhos a cada passo.

Que aquele motorista de táxi não havia decidido se matar acompanhado.

Que a faca nas mãos do açougueiro retalharia somente a carne já morta.

Que não lhe atingiria a cabeça uma televisão arremessada da janela.

Fechou as cortinas, apagou todas as luzes, jogou-se assustado sobre os rasgos do tecido velho do único sofá da sala, intimidado, encolhido em si, o mais óbvio esconderijo, de onde não haveria fuga, onde consumiria o resto das horas daquele dia e talvez de toda vida.

Lá pela noite que se lembrou do cobertor herdado da última briga dos vizinhos, largado sobre a cadeira, de cores tão parecidas com seu antigo. Jogou-o contra as costas, arrastou-se para o quarto tropeçando nos restos natimortais destas últimas emoções que lhe cortaram a cabeça.

Esticou-o por toda a cama.

Deitou-se coberto pelo abandono das lembranças das últimas muitas frias noites que atravessou em claro naquele mesmo quarto. De uma sensação antiga, quase não se recordava, estava dos ombros aos pés aquecido por inteiro.

Não houve tempo de notar o bem ou o mal que lhe causou aquele calor, adormeceu pelas próximas quase doze horas em uma escuridão universal.

Como nos idos da insônia, não houve o incômodo de um sonho sequer.

Acordou alguma hora, juntou as cartas que havia largado pelo chão, leu novamente em cada uma seu nome por inteiro, e reafirmou-se como quem nunca carregou um apelido pelo passado desta vida.

Que não caminhou até ali, como ela previu ou desejou antes de partir, por um lapso perene até uma inescapável autopiedade.

Nem, ao menos, o contrário disto.

Marcos Eduardo Penteado
Enviado por Marcos Eduardo Penteado em 20/07/2023
Código do texto: T7841743
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