A polícia do sonho
Para Magrão, guitarrista da banda de punk rock Secreção, não era a graça, a beleza, o carisma e nem o Fender Jazz Bass azul que mais o impressionava em Mila Cox, a baixista e vocalista dos Crop Circles.
De acordo com ele, em conversa com Zími, baterista, vocalista e parceiro musical de Cox, o que realmente lhe roubou o coração foi a forma como as pontas do cachecol batiam em seus joelhos, enquanto caminhava ao chegar no local do evento.
Magrão dizia que esse detalhe exibido sem querer, mas de forma tão charmosa e espontânea, lhe tirou do sério.
Era uma festa junina com bandas do underground, evento que segundo Mila Cox, demorou a ser compreendido pelos síndicos, tamanha a falta de familiaridade dessas pessoas com esse tipo de evento.
Era um deles pela realização do evento, contra a resistência de outros quatro.
Havia muitas crianças do condomínio de classe média que nunca tinham visto uma guitarra de perto. Instrumentos musicais pareciam causar muito mais medo em alguns pais do que armas.
Uma garota que morava ali propôs a escalação dos Crop Circles, pois os havia visto tocar em Limeira, em 2022.
Magrão e seus colegas haviam encerrado a apresentação do Secreção quinze minutos antes, e agora a banda de glam rock Silvícolas se preparava para fazer o último show daquele domingo.
Já era noite de domingo quando iniciaram o show.
Era o quarto e último show daquele dia, daquela festa em São Caetano.
Esse rolê foi programado para acabar por volta das dez da noite.
Três shows já tinham acontecido antes dos Silvícolas: o uruguaio Silvano, banda de um homem só, foi o primeiro, seguido dos Crop Circles e do Secreção.
Zími já havia conversado com Magrão à tarde, antes de tocarem. A princípio parecia um cara bastante coerente no que falava. Nada indicava que ele fosse louco. Então Zími logo ficou curioso para saber se depois ele havia tomado algo para ficar louco.
Minutos depois de Magrão contar essas coisas a Zími, Mila Cox os avistou debochando cruelmente dos Silvícolas, que estavam no palco naquele momento.
Riam alto e até apontavam para eles, em meio a gargalhadas de deboche.
Nada disso abalou aqueles posers espalhafatosos, uma banda que misturava Glam e Hair Metal de maneira bastante original, até o ponto em que isso é possível, e não pareciam simples cópia das bandas do gênero, e que foram varridas pelo grunge trinta anos antes.
Fizeram o show até o fim e aparentemente agradou, pelo menos de acordo com a reação do público, com cerca de cento e cinquenta pessoas. Apenas duas pessoas zombavam deles.
A maioria das pessoas presentes assistia com curiosidade aquela banda que, apesar de a princípio parecer uma simplória mistura de Ratt e Europe, tinha personalidade.
Depois do show, Mila Cox estava furiosa e foi em direção à dupla de fanfarrões.
Cabelos lisos até o ombro, com tintura laranja, saia xadrez, um pesado par de botas e camiseta do Bikini Kill.
Ela falou: “Que porra é essa? Onde está o respeito pelos caras?”
Quando Magrão a viu a dois metros de distância, e brava, sua cara empalideceu rapidamente e ele emudeceu.
Zími falou: “Não estamos desrespeitando ninguém. Fizemos nosso show, agora estamos assistindo essa banda. Eles têm algo de humoristas. Há algo satírico tanto no som como no visual desses caras.
O vocalista parece o Marinho Chagas. Com uma camiseta do Cheap Trick. Nós, inclusive vamos parabenizar esses heróis pela coragem e competência. Divertiram dois caras que não riem de qualquer coisa. Depois de três shows em que a temática dos artistas era muito mais política, detonando políticos escrotos e pastores picaretas, salientando que insegurança alimentar é um apelido fofo pra fome, que atinge metade desse país medonho, finalmente entendemos porque essa banda foi escalada pra encerrar o rolê. Afinal é uma festa junina e é preciso que haja alegria.”
Mila Cox: “Vocês apontavam pros caras e davam risada! Com a idade que você tem, já deveria ter aprendido a manifestar com mais clareza o que pensa!”
Ela olhava para Zími e aparentemente ignorava a presença de Magrão. Só o conhecia pela internet e não tinha intimidade, mas para o caso de a carapuça servir, então estava dito.
Zími falou: “Quando um cara sobe ao palco e vê que causou reação à plateia, qualquer que seja essa reação, é algo mais satisfatório que a indiferença. Quando as pessoas saem para buscar cerveja no meio do show, aí sim o artista tem que reavaliar seu trabalho. Eu não sou um daddy rock que ouve clássicos do rock e fica falando que no passado a música era melhor. Autenticidade é tudo, e caso você consiga fazer algo novo, esteja preparada pra ser imitada e copiada. Há o lado revoltante, e há também um reconhecimento pelo trabalho.”
Acabou naquele momento o show dos Silvícolas, então Mila Cox, Zími e Magrão silenciaram por um tempo curto para olhar a festa que faziam entre eles pela sensação de missão cumprida.
Eles levaram garotas e amigos, que pareciam ter saído de 1988, pouco antes dos posers dos anos oitenta serem varridos da cena. Zími se perguntava onde aquelas pessoas andavam em dias comuns da vida cotidiana.
Também havia hipsters no meio do público, possivelmente por conta da publicidade feita por Mila Cox. Em shows dos Crop Circles sempre havia hipsters.
Pessoas se dispersaram e grupos se desfizeram com o encerramento do último show e Zími logo sugeriu a Cox que procurassem Silvano para irem embora.
Silvano e os Crop Circles tocaram no dia anterior, em outra festa junina, na Casa Verde.
Zími sempre se dizia estafado quando tocavam em dois dias seguidos, e mal podia esperar para deitar no banco traseiro da kombi de Silvano, e acordar na garagem do prédio em que moram, no centro de São Paulo.
Magrão não tinha esperança de que sua proximidade com Mila Cox passasse de coincidências na agenda de shows ou eventuais conversas na internet. Mas ele sabia que ela estaria policiando sua conduta até mesmo em seus sonhos.
E isso aconteceria por desejo dele. Aderir a uma cartilha que se não fosse seguida, o faria temer pelo repúdio de gente coerente.