Última morada
Lembro-me que foi um bom tempo depois da noite romper o dia. Depois do barulho eu saí rapidamente, ou melhor, fui forçada a sair. Nunca quis deixar meu cantinho. Sabia o que me esperava lá fora, mas ninguém escapa às agruras do destino.
Parti feito um raio, e com meu olhar perspicaz fui examinando tudo pelo caminho. Vi barracos de madeira e casas de alvenaria assimétricos, disputando cada centímetro do terreno acidentado. Vi uma maioria de gente preta depois de um dia de trabalho espalhada por um labirinto de ruas apertadas. Vi motos malabaristas rasgando o asfalto, apesar dos obstáculos e dos buracos via afora. Carros não demostravam a mesma agilidade. Vi um grupo de músicos aquecendo os instrumentos para a roda de samba de logo mais. Vi gente branca também, uma minoria de moradores não menos sofrida e uma grande quantidade de forasteiros pelas ruas da comunidade em busca da diversão dos bailes funk que há muito tempo fez subir o morro os jovens de classe média. Vi poucas crianças brincando nas ruas e uma grande quantidade em casa, hipnotizadas diante da telinha mágica portátil.
Vi ações coletivas, solidariedade, diversidade, vi senso de pertencimento, vi esperança, desenvolvimento, coletivos dos mais variados; vi a potência da favela. Vi também jogo de sinuca à dinheiro, jogo de cartas, jogo do bicho; vi no jogo da vida, jogarem com as vidas dos aviõezinhos do tráfico que na escola mal haviam chegado à etapa das frações matemáticas, e com a vida de soldados sem farda que mesmo sem jamais terem servido à pátria abraçavam o fuzil com destreza. Vi jogarem com a vida de jovens deslumbradas, inebriadas pelo poder efêmero do cacique da vez.
Não entendi muito bem porquê fui obrigada a deixar meu porto seguro. Um lampejo e ali estava eu naquele trajeto linear, sempre em frente, atirada à própria sorte, apenas seguindo.
Vi orquestra de jovens, futebol de rua, vi igreja e terreiro. Vi roda de capoeira e o mar, mas as vestes da noite cobriam sua formosura.
Não conhecia o caminho, mas sabia que não estava perdida. Em algum ponto encontraria minha morada. Roguei à Deus que fosse em um lugar tranquilo, longe desse amontoado de gente. Meu desejo era me abrigar em uma praia deserta e aproveitar meus últimos momentos sentindo o cheiro salgado do mar. Mas, a fatalidade me revelou outra vereda.
Vi um menino correndo, voltava da padaria nos arredores da sua casa. Olhar despreocupado, sorriso largo e saco de pão na mão. Foi num piscar de olhos, a velocidade era grande. Era impossível aqueles olhinhos ensolarados perceberem minha aproximação. Já eu, não tinha como evitar.
Depois do pânico, o impacto, o breu, o martírio. Para muitos, morar no coração de alguém é um mar de contentamento retumbando no peito. Para mim não, meu anseio mesmo era a solidão. Preferia o conforto do areal. Mas não foi para isso que fui forjada. Assim, sem direito de escolha, não me restou outra opção senão cumprir minha sina perversa.
Mais um corpo jovem na favela e, mais uma vez um corpo preto, a carne mais barata do