UMA KAFKA PESSOAL
Dormia profundamente quando pressentiu aquilo percorrendo seu corpo, com aquele toque frenético e inconfundível. Só um inseto tão comum quando imundo, teria a ousadia desvairada de invadir seu leito tão excepcionalmente arrumado, limpo e porque não dizer, cheiroso, inclusive...
Do primeiro susto, a criatura conseguiu escapar dos ataques mais instintivos, fugindo sorrateira para debaixo da cama (mal-di-ção!). Porém, agora, todos os seus instintos estavam em “alerta-geral”, irremediavelmente... com o tempo congelado, tudo que ocorresse principalmente no âmbito do quarto seria finamente detectado. Começava ali uma fina guerra de nervos...
Todas as mínimas manifestações de vida em movimento seriam monitoradas, em um longo vácuo misto de vazio e imensidão de pequenas coisas... o cansaço a propósito, já havia mandado vários recados... mas, agora era pessoal!
Uma... (Ôpa)! Duas... (Ummm)! Três batidas de asas! PRONTO! Está confirmado... O bicho está tentando voar por detrás da porta, para não ser percebido e finalmente poder seguir pelo corredor para quem sabe… chegar a tão almejada cozinha!!! Não dessa vez! Não com ele alí, caro intruso desavisado... Não! Você NÃO VAI PASSAR!
Era preciso calma agora, uma ação mal planejada e tudo se perderia... teria que ser logo depois da próxima tentativa de voo... quando o inseto estivesse ainda se recuperando do esforço anterior... calma... calma... c-a-l-m-a...
E o bote foi dado no instante exato! - O bote consiste na arte de saber libertar todo o instinto selvagem no momento exato! O resto, a natureza faz sozinha, sem nenhuma ajuda da racionalidade...
Uma única chinelada certeira e... PRONTO! Vitória!
Enterrou o cadáver derrotado do artrópode no cesto de lixo do banheiro... Depois foi inutilmente tentar retomar o sono... com a fortíssima impressão de que tinha matado a si mesmo...