Um dia na vida
Era quinta-feira e Mila Cox marcou dois shows para os Crop Circles no fim de semana.
Duas festas juninas, uma delas roots, na periferia de São Paulo, e a outra mais gourmetizada.
Sexta na Casa Verde e sábado em São Caetano.
Na sexta seria sossegado, show deles com abertura do uruguaio Silvano.
No sábado seriam quatro shows, e dessa vez deram sorte, porque a organização do evento os colocou para fazer o segundo show, logo depois que Silvano tocasse.
Depois deles, mais duas bandas tocariam, os Silvícolas e o Secreção.
Nenhum dos dois tinha ouvido falar dessas bandas, mas prontamente pesquisaram ao verem o flyer do evento.
Zími falou: "O Secreção é banda punk com caras jovens e os Silvícolas são Glam, tem vocalista de penhasco e são espalhafatosos. Na pesquisa constatei relatos sugerindo que eles usam as cuecas uns dos outros sem problemas. Não vai haver nada de novo ali. Acho incrível que algumas bandas gostem de tocar por último. Espero que seja sempre assim, até mesmo se a nossa popularidade crescer com o tempo. Assistir ao último show com a sensação de missão cumprida e com um grande drink na mão é um momento glorioso. Não importa nem mesmo qual seja o último show."
Para eles, haveria mais necessidade de conhecer as bandas se o show dos Crop Circles fosse o último da noite.
Gostavam de tocar em festas juninas. Elas eram diferentes entre si, e eles quebravam por pouco mais de uma hora os protocolos desse tipo de evento.
Então, Zími entrou no apartamento que dividia com Mila Cox, e ela estava na sala tratando dos detalhes desses shows, pelo computador.
Ele fechou a porta e falou: "Devemos fazer uma música sobre o coach. Ele me abordou no elevador, e todas as suposições que tínhamos sobre o charlatanismo dele se confirmaram."
O 'coach' era um vizinho do prédio que treinava as pessoas para serem felizes.
A cara que ela fez quando foi interrompida, lembrou a Zími a cara que a gata de sua avó fazia quando era tirada de cima de um travesseiro enquanto dormia.
Ela usava uma camiseta com a cara do Jello Biafra fazendo uma careta.
Ela falou: "De qualquer maneira essa música só ficaria pronta na semana que vem. Não estamos atrasados em termos de lançamentos. Lançamos um single há dez dias."
Zími: "Então o tema já fica estabelecido pra próxima faixa. Ele me falou sobre como seus clientes tiveram resultados incríveis e agradecem a ele diariamente. Ele nunca teve banda, nunca jogou bola, talvez nunca tenha tido namorada. Ele gosta de Coldpay e Silverchair."
Mila Cox: "Que show de horror! É muita loucura que ele tenha te abordado tão rápido. Falamos dele ontem."
Zími: "Eu estava entrando no elevador, enquanto ele entrava no prédio. Eu fingi que não vi, e não esperei. Mas ele chegou a tempo e abriu a porta antes que o elevador subisse. Extraí o máximo de informação que pude, mas ele viu que viraria zoeira e deu fuga antes de responder mais perguntas."
Mila Cox: "Zoar o coach numa música pode gerar uma crise com a classe dos coachs, caso sejamos mal interpretados.".
Zími: "Se a música atingir essa repercussão, então será um single de sucesso. Mas não acho que seremos mal interpretados. Esse vizinho é o único coach para ensinar as pessoas a serem felizes que conhecemos com essa proximidade. Ele me abordou questionando minha insatisfação com o mundo sem nunca ter conversado comigo antes. Mas ele já me viu antes tomando cerveja na padaria, de manhã, no meio da semana, e ficou bege. Se a música estourar, as pessoas saberão que estamos falando do indivíduo e não necessariamente da classe. Quando eu perguntei do que ele gostava de música, ele se engasgou, respondendo sem saber se a resposta merecia ou não o constrangimento de ambos. Mas foi quando perguntei sobre a concepção que ele tem de felicidade, e qual era a felicidade que seus clientes atingiam, que ele se esquivou alegando pressa, desceu no quarto andar, e eu vim pra casa."
Mila Cox: "Essa gig de sábado em São Caetano vai ser louca, ainda estaremos na força do show de sexta."
Zími: "Eu tenho o dobro da sua idade e acho meio cansativo, mas são coisas da vida. Não é uma questão de resistência física. Eu tenho prática e sei que o artista tem que melhorar com o tempo, e não piorar. Mas o que eu não tenho mais é a urgência juvenil, de se jogar como se fosse a última chance sempre. E também fui ter internet pela primeira vez na minha casa quando eu já era mais velho do que você é hoje. A gente era obrigado a estar mais nas ruas por mais tempo, para tomar conhecimento de qualquer coisa que estivesse acontecendo. A telefonia naquele período anterior à internet era completamente precária não apenas pela falta de portabilidade dos telefones, mas pelos intermediários que atravessavam as chamadas, que muitas vezes eram atendidas por alguém que não era a pessoa com quem se desejava falar. A impressão que eu tenho é que apesar dessa tosquidão, havia a necessidade de mais compromisso com o que era combinado, especialmente se você tivesse uma banda. Mas esse rolê de São Caetano vai ser bom mesmo. Temos kombi pra levar e servir de acampamento. É uma vitória."
Então Silvano bateu à porta, foi chamado para entrar em coro por Mila Cox e Zími.
Ele anunciou que vai comprar um gerador de gasolina para poder ligar amplificadores em lugares descampados e ermos. Seria bom para shows, ensaios e atividades experimentais.
Disse também que a ideia do gerador já era antiga para outros fins. Mas durante o ensaio para os dois shows do fim de semana, ocorreu-lhe que agora precisava do gerador também para ligar o amplificador da guitarra. já que se consolidava como artista monobanda que dá ênfase a esse instrumento.
Oitenta por cento de sua prática é num violão uruguaio que comprou usado e que ficou encostado por anos, mas pelo qual tinha grande estima. Os outros vinte por cento era com uma Guibson ligada ao pequeno amplificador que usa em casa, para avacalhar um pouco menos com as regras do condomínio. Tinha um maior que leva a shows onde não há qualquer equipamento.Também falou que tem uma música nova pronta.
Então Zími falou: "A gente lançou single há dez dias, mas já definimos o tema da próxima música."
Silvano: "Qual é o tema?"
Zími: "É o coach, aquele vizinho que treina as pessoas para serem felizes."
Silvano: "Aquele sujeito do quarto andar? Aquele é um picareta de marca maior! Eu apenas tento me esquivar das abordagens. Já me fiz de louco pra escapar algumas vezes."
Zìmi: "Eu tentei escapar. O cara correu e abriu o elevador antes que ele subisse."
Silvano: "Aí você vai usar o estereótipo desse cretino pra dizer que quanto mais ignorante alguém seja, mais obediente esse alguém é. depositando a maior e mais absoluta confiança em quem o dirige. Pode ser um político de estimação, um pastor que vende terrenos no céu ou esse cretino que treina as pessoas pra que elas se tornem felizes."
Zími: "Isso mesmo! E a sonoridade vai soar como uma mistura de Ministry e B52's!".
Mila Cox: “No lado B vai entrar uma música sobre ser livre na medida do possível. Sobre o transtorno de saber que não nascemos livres. E que a luta é por uma liberdade pelo menos parcial, já que a liberdade total é um conceito complexo que existe mais para que seja buscado, do que realmente alcançado. O rebanho não é livre, nem quer ser livre, porque nem sabe que não é livre. O rebanho é rancoroso, poque a única alegria que tem é quando o lobo come a ovelha ao lado. Essa faixa vai sair só no compacto em vinil de sete polegadas. E depois de anos será relançada numa caixa que lançaremos com tudo que gravamos.”
Silvano: “E com e gerador, ao longo desses anos a gente vai poder fazer muito mais coisa, tocando até de graça em certos lugares. Levamos tudo na kombi, montamos nos lugares remotos e tocamos. Logicamente isso não é algo pioneiro, mas é tão viável que é exatamente o que faremos.”
Do forno de padaria na cozinha de Mila Cox e de Zími saíram quatro pizzas naquela véspera de show. Zími guardava as bordas para comer com requeijão na manhã seguinte.
Na televisão colocaram um show do Fugazi, que terminava e começava de novo.