Um dia leio
Aquele livro que prometi a mim mesma ler há um mês estava esquecido na estante de casa. Quase um terço desse tempo limpando o móvel, e ele ainda parado lá, numa inércia melancólica.
Eu sempre falava “lerei amanhã” e, assim, os dias passavam. Quando devolverá ao dono? “Em breve, prometo, ainda estou lendo”, justificava com poucas palavras nos momentos oportunos.
Sempre ocupada com outros afazeres. Chegava cansada, quase não comia nada antes de dormir como uma pedra e o mais estranho, ainda acordava exausta.
Limpando a estante, a diarista que eu contratava o avistou e se encantou pelo título, pelo número de páginas padrão de um romance literário e pela boa apresentação editorial.
Ela gostaria de ler e, vencendo a timidez, pediu autorização no momento que eu tomava às pressas o meu café da manhã. Tossi o sim, correndo em seguida para o trabalho, como sempre fazia em quase todas as manhãs.
Três semanas depois, a promessa permanecia à espera de mim. De vez em quando, eu mesma limpava o pó da casa. Não era por ter dinheiro que às vezes chamava àquela diarista, mas porque me faltava tempo para os afazeres domésticos.
Nas vezes que limpava a estante, eu percebia a presença de um marca páginas no livro. Toda vez que reparava nisso, o marcador estava numa posição diferente, até o dia que sumiu, assim como o contato da diarista.
Intrigada, peguei o livro para folhear. Do início ao fim, mantive meus olhos atentos, esperando encontrar o marcador da prestadora de serviços domésticos. Mas não o encontrando, sentei no sofá com o livro ainda em mãos.
Voltei para o primeiro capítulo, curiosa pela lembrança de uma vez ter visto a diarista rindo de algo que lera entre as pouco mais de quatrocentas páginas.
Movida pela curiosidade, comecei a ler. Parecia que o primeiro capítulo nunca terminaria. Era meu dia de folga. Portanto, continuei a leitura, embora já estivesse bocejando a cada meio minuto.
Passado os primeiros capítulos, senti uma estranha sensação, como um leve aperto no peito. O sono espalhou, e eu fiquei tão desperta como se tivesse tomado uma xícara de café. Não sei dizer o motivo exato, porém cresceu o meu desejo de acompanhar a história daquele livro até o fim.
Por um momento pensei que a personagem, protagonista da obra, fosse eu mesma: gostos, desejos, sonhos e tantas outras coisas tínhamos em comum. Se no início não tivesse a mensagem de que qualquer coincidência com a realidade era mera coincidência, eu teria trocado o nome dela pelo meu.
Afinal, sua vida parecia tão agitada e cansativa quanto a minha. Embora não pudesse me ouvir, eu lhe perguntava por que vivia sempre tão atarefada, gastando mais energias do que realmente tinha em atividades que detestava fazer? Quando fora a última vez que saiu de sua casa sem que fosse para o trabalho?
Quando os pelos do meu corpo arrepiaram, senti a personagem rebater as minhas indagações com uma só pergunta, cuja resposta eu não tinha em mente. Ela queria saber o que eu faria se estivesse no lugar dela?
Não sabendo a resposta, retomei a leitura, esperando que me apresentasse suas escolhas e o que encontrou no final de seu caminho. O que para ela levou anos para viver; levei horas para conhecer o que vivera.
Coisas tão ruins e boas preencheram o tempo do qual se propôs a obra a narrar. Molhei a manga da minha blusa com a emoção que escorreu dos meus olhos.
Ela envelheceu e não conseguiu viver tudo aquilo que sonhava. Seu tempo foi tomado muito mais pelo estresse do trabalho do que pela satisfação de fazer as escolhas que sempre desejava.
Foi difícil para mim concordar com o último ponto final. Deveria haver algo melhor adiante. Embora ela ainda tivesse vida no último capítulo, sua saúde já estava debilitada demais para realizar seus sonhos.
O futuro terrível da morte que parecia distante se tornou seu iminente presente. E no epílogo, senti meu coração em pedaços ao ler as descrições de sua morte.
Perdi a noção do tempo. O relógio da sala marcava meia-noite, mas eu não sentia fome. A leitura chegou ao fim. Nesse momento me dei conta que eu não morrera como a personagem.
No dia seguinte, lá no meu trabalho, fechei o livro pela segunda vez. Eu trabalhava como secretária e em boa parte do meu tempo, não fazia muita coisa senão marcar presença.
A porta automática abria e fechava dezenas de vezes por dia, como olhos abrindo para a realidade e fechando para o sonho. Eu tinha o desejo, mas faltava a coragem de sair daquele ambiente chato e monótono e viver o que sempre sonhei.
Eu sentia aquele escritório arrancando gradualmente uma parte preciosa de mim, além das minhas energias. Toda vez que eu entrava por aquela porta era inevitável a fadiga e as enxaquecas.
Somente após ler aquele livro pela terceira vez, tomei a maior decisão da minha vida. Decidi sem mais hesitar como das vezes anteriores. Fui à sala do chefe e falei com firmeza, decidida que eu não perderia mais tempo, “por todos esses anos, sou muito grata ao senhor, patrão, mas há sonhos em mim que não posso mais reprimi-los”.
Eu ainda não tenho certeza de como realmente será o final do meu caminho, mas acredito que no fim não irei me arrepender como a personagem, pois aprendi com a história dela que: “quem não apenas sonha, mas vive seus sonhos, tem uma chance maior de morrer satisfeita com a vida”.