A cartomante

A vertigem. A vertigem, como um raio cortante, translúcido, raio de Zeus. Tarde de um dia não muito feliz. Tudo se deu como se o universo, um novo Big Bang, uma explosão cataclísmica, tudo se rompeu. Clarão. Fragmentos são lançados. No escuro do universo, como se nada mais há, o silêncio no vácuo que a explosão causou, no vácuo, fragmentos soltos. Meteoritos. Rochas espaciais, meu Deus! Fim dos tempos? Qual tempo, se antes nada havia, só conjecturas, perguntas fragmentadas, perguntas sem razão de ser. Não. Mil vezes não! Não às certezas, não às incertezas. Só o verso. Só o verso salvador da alma atormentada. O verso salvador como o ar no pulmão. Ar. Ar necessário. Ar, poesia, amor, nada mais que ar, poesia e amor, disse o poeta antes da queda. Da queda fatal. Da queda, como se restasse apenas uma única saída. Como se nada mais, nada mais além da queda. Aceita? Aceita, querida um Augusto dos Anjos ou prefere Hilda Hilst? Florbela Espanca, a portuguesa, ora pois, querida. Florbela é doce e triste. Quem não é doce e triste, acredite, não viveu um grande amor. Só quem viveu sabe. Cartas de amor são ridículas! Ora, ora, já ouvi milhares de vezes. Não me canso. Amar, se pensar direito, com cuidado, com lupa de cientista, verá, verá como se o mais categórico método de análise, irrefutável, verá, amar é ridículo. Não achas? Também não acho. Devo concordar. Não acho que amar seja ridículo. Amar é a possibilidade da entrega, da entrega sem cobrança, sem desconfiança. Amar, querida, amada, Florbela e tantas outras. Amar, nada mais que amar, eis a bóia salvadora no mar das decepções, das deserções. O verso. Somente o verso no verso do guardanapo. Poucas linhas, linhas econômicas, linhas trêmulas, linhas...

É assim. É assim e não de outro modo. É assim que sigo na estrada, é assim que piso esse chão; não há outra possibilidade. Não há outra possibilidade, repito, disse Ulisses ao recusar o amor traiçoeiro da Ninfa. Não, disse e seguiu ao encontro de Penélope, sua amada. Seguiu viagem.

O latido do cão, tão logo parou frente ao portão, o cão latiu como se reconhecesse aquele que chegava. O cão, mais que se possa imaginar, o cão anunciou a chegada e na varanda apareceu a filha não reconhecida e ele, o visitante que o cão reconheceu e latiu, o visitante chorou. Chorou porque envelheceu. Chorou porque não viu, não viveu, com a filha que rejeitou, as alegria e descobertas da infância, da adolescência, da primeira paixão. Não chorou com a filha a primeira decepção, não, e por isso, nesse átimo de tempo, como um raio, tudo vem, e ele chora.

Da varanda, como se não quisesse, da varanda, naquela tarde de outono, tarde sugestiva de chuva próxima, chuva renovadora, não desejou sair ao portão; não queria. Sair ao portão, esse passo aguardado, por ele aguardado, não, ela, não queira seguir. Ficou na varanda. Não desceu. Primeiros pingos. Chuva.

A vertigem, novamente a vertigem. O corpo balançou. As mãos ao portão. Vertigem, quase cai. Ficou. Dois minutos, não mais que dois minutos. Saiu. A varanda ficou deserta, ninguém mais na varanda. O visitante...seguiu. chuva aumenta. Pessoas correm. Chuva aumenta. Varanda vazia. Chuva.

Gosta de cinema? Ah, eu sei. Um filme pode ser mais revelador que uma ida à cartomante, não acha? Faz pouco tempo, sabe, talvez menos de seis meses, fui abordado por uma suposta cartomante. Segunda ela, eu, quer dizer, as cartas tinham uma surpresa pra mim. Era só um minutinho (toda vez que ouvi "um minutinho" fiquei horas) isso, assim mesmo, no diminutivo, e que as cartas (pensei, as dela, claro) trazem segredos que somente gente escolhida (ela, claro) era capaz de desvendar os sinais. Devo confessar, pensei, será possível mesmo, será que as cartas conseguem revelar segredos? Um frio na espinha. E se as cartas revelarem um caso que tive, no almoxarifado com a irmã, casada, do meu melhor amigo. Tínhamos, dezoito, eu, vinte e oito, ela. Pensei, e se as cartas revelarem, pensei, que seja, mas foi há tempos. Enfim. A cartomante insistia. Eu, incrédulo, cético, não estava disposto a querer saber de coisas passadas. Não. Não sentei. A cartomante, incrédula ficou. A cartomante disse "o raio, o raio de Zeus, o Big Bang, virá, não desista, não desista, meu amigo. sempre há outro amanhã ". Segui.

Um dia. Só mais um dia. Olho as estrelas. Olho as estrelas.