A Deusa do Asfalto

Nelson era ator de uma peça só. Recebia convites apenas porque participara de uma peça bem sucedida que ficou em cartaz por cinco anos nos anos 1970 no Sudeste. Sua atuação como antagonista fora apagada e minimizada pela beleza extravagante do protagonista. Porém, os poucos diretores que ainda se aprontavam a convidá-lo, miravam-no com olhares promissores porque não era todo dia que se achava um ator que participara de A Deusa do Asfalto. De todos que ali estiveram, Nelson era o único que marchava sem muitos trabalhos.

Fora casado com Lucélia, uma atriz lindíssima que fora protagonista de A Deusa do Asfalto, e que, após a separação, conheceu um ator muito mais jovem e simpático e de futuro brilhante e consigo estabeleceu laços matrimoniais. Nelson debatia-se de raiva.

Certo dia Nelson começou a organizar o apartamento. O dono viria dali a uns dias atrás do aluguel atrasado. Atrás de um cômodo da sala repousavam vários pôsteres. Ele, então, puxou um deles e contemplou-o por alguns instantes. Era o cartaz de estreia da peça no Rio de Janeiro. Extático e trêmulo, Nelson lembrou-se daquele tempo.

Durante a noite não dormiu direito. Mal parava na cama. Rolava, descobria-se e tentava apenas pensar. Por vezes, levantava-se e ia à janela contemplar a noite, já que a lua, oculta pelas nuvens carregadas de chuva, se escondia.

No meio da madrugada, levantou-se, arrumou-se e saiu. Em uma esquina qualquer, tropeçou na soleira de um bar e entrou. Sua noite estava apenas começando.

Dali uns minutos, uma moça vestida em andrajos, com cheiro de perfume barato e a fumar um cigarro fedorento sentou-se próxima ao balcão.

- O de sempre, Adelino.

O dono do bar, um português mal humorado, prontificou-se a encher uma taça de vinho, a acrescer mais alguns destilados.

Nelson reparava na moça. Seus gestos, a maquiagem desbotada, o batom borrado. Ela já parecia bêbada de porres anteriores.

- Foi meu sexto cliente de hoje, Lino! - ela disse, aparentemente contente com o feito.

O português deu-lhe um sorriso, a ojerizar mentalmente a escolha da moça. Tinha a mania de cofiar os bigodes quando não aprovava algo, porém os gastos dela eram o que ali mantinham-na.

Ébrio de amor, Nelson levantou-se e aproximou-se.

- Como chamas, moça? - perguntou, a gozar dos verbos conjugados para o segundo pronome do singular. Sempre o fazia após altas doses.

- Prazer, Marina - ela disse, a levantar a mão direita. Nelson beijou-a, olhando Marina nos olhos.

Após um período de plena contemplação, tomou novamente impulso para perguntas.

- E o que uma dama faz neste recinto a esta hora?

- À procura de dinheiro...

- Dinheiro? - perguntou, a esboçar espanto, mesmo a saber da obviedade. E tomou mais fôlego: - Quer dizer que você é...

- Puta.

- ... uma deusa do asfalto! - finalizou. - Não gosto desse termo que utilizaste, moça. É muito forte, muito vil.

Marina fez uma expressão como que indiferente ao que Nelson disse. E ela perguntou:

- E você, como chama?

- Nelson - disse, a arquejar uma sobrancelha.

E ambos passaram a se contemplar. Então, Marina olhou para Nelson com um certo receio. Parecia que a visão de Nelson lhe trazia reminiscências.

- Por que você me chamou daquilo? Posso saber? - disse, a desconfiar.

- Aquilo o quê? Deusa do asfalto?

Ela assentiu.

- Ora, por nada. Associo as moças de sua função a este vulgo.

Ele tomou outro gole.

- É que há muitos anos assisti a uma peça com este nome. E você me lembra alguém...

- Se for o personagem que só tinha uma fala, irmão do protagonista, que aparecia apenas no terceiro ato. Sim, sou eu.

Ela ficou boquiaberta. Extasiada. Levantou-se e atacou Nelson. Beijou-o e pediu uma caneta ao mal humorado português para que Nelson lhe assinasse um pedaço de papel.

- É o primeiro autógrafo em quase quarenta anos - ele disse.

- Não vejo a hora de mostrar para as outras meninas - falou a mulher.

Ela saiu do bar, apressada. Nelson tentou contê-la, a tropeçar - novamente - na soleira do bar, mas já era tarde. Ela sumiu no negrume de uma viela do outro lado da rua. Ao se levantar, murmurou alguma coisa ao português - só sabia reclamar dos preços - e deixou o dinheiro sobre o balcão.

Após o banho, a ouvir os pássaros cantantes anunciando a alvorada, sorriu para o nada e disse em voz alta:

- Alguém se lembra.

Deitou-se na cama e cobriu-se. Dali a algumas horas morreu. Em silêncio, sem dar trabalho, dormindo. A ainda dever, é claro, o aluguel.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 25/06/2023
Código do texto: T7822307
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