A Felicidade Alheia

Acordou bem cedo. Sentou-se diante a tevê e assistiu a algum programa desses em que as tragédias são motivo de pauta. Após cansar-se, buscou seu computador de mão.

De que esses idiotas tanto riem?, perguntou-se a si mesmo ao fuçar em suas redes sociais. Passou a mão nos olhos. As protuberantes olheiras lhe incomodavam. Olha a foto de Marília, disse a si mesmo, na Torrei Eiffel e eu, contudo, não tenho dinheiro para ir daqui ao Centro. Culpava a si mesmo de suas péssimas condições. Desempregado, devia dois meses de aluguel. Inventou uma estória dramática para o dono do apartamento que, de forma complacente, cedeu-lhe mais algum tempo. A solidão corroía-lhe a vontade de continuar. Se eu ao menos tivesse me casado, pensava, teria tido cinco filhos como os dedos das mãos, tal como o fez Mauro, e talvez seria mais feliz.

Fechou seu computador e ficou prostrado em silêncio, a ouvir os cochichos dos vizinhos. Contemplava a parede enquanto ouvia, invejoso, as palavras acariciantes que o vizinho apaixonado, com sotaque nordestino, dizia a sua esposa.

Levantou-se e foi à cozinha. Abriu as gavetas, observou as facas que jaziam e, como se uma voz murmurasse um não em sua cabeça, fechou com pressa a gaveta. Dirigiu-se à geladeira e notou que muita coisa ali faltava. Lembrou-se de algumas bebidas que havia armazenado perto do armário. Pegou-as, sentou-se à mesa e começou a esvaziá-las uma a uma.

Era quase meio-dia. O sol brilhava forte lá fora. Pôs a cabeça para fora da janela, meio zonzo da bebedeira e passou a fitar os transeuntes que pela calçada passavam. Para onde vão tão entusiasmados? Aposto que vão fazer seu dinheiro, disse. Como queria aquela camisa que vi Pedro usar! Ele diminuía-se sempre diante de seus pouquíssimos "amigos". Pensava que todos tinham condições melhores que a sua. Observava sua indumentária, os restaurantes onde frequentavam, a assiduidade com que iam ao shopping, ao cinema ou às compras. Para ele, os outros sempre faziam coisas mais instigantes e produtivas que as suas.

Naquela tarde, foi dar uma volta. Custou sair de casa. Afinal, toda roupa que usava seria mal vista pelos demais. Quando finalmente decidiu-se ir, eram quase duas. Sentou-se em um café que tanto apreciava. Consumiu nada, afinal capital nem tinha. Notara que algumas pessoas faziam careta ao bebericar seu café pela quentura. Outros não colocavam açúcar, esbanjavam-se em adoçante. Outros mexiam tanto em seus celulares modernos e quadrados e gigantescos com suas luzes fortíssimas e bem atrativos, que esqueciam-se de seus cafés que acabavam frios. Outros levantavam as mãos para pedir chá. E ele ali, a ocupar um espaço no balcão, atrapalhando o fluxo de gente. Ao notar a inépcia do cliente ali a uns bons minutos, um homem perguntou-lhe:

- Já fez teu pedido? - perguntou, com olhar desconfiante e sobrancelhas levemente contraídas.

Pergunta fatal, pensou. Não tenho dinheiro. Logo, abriu a boca:

- Um copo d'água, por favor - disse.

Bebeu e saiu dali. Sabia que se ficasse mais alguns instantes seria colocado porta afora pela atitude dos bem-educados cidadãos da época atual.

Ele sentia-se vitimado pela sociedade. Vitimado por um modelo de vida injusto, onde não teria muitas opções, onde o umbigo é o principal centro das atenções, onde a miséria dança nas ruas enquanto a obsoleta opulência aprecia através de um vidro de dentro de um restaurante que vende sua marca a clientes sempre insaciáveis.

Quanto drama faz o homem quando vê-se na inferioridade. Esta que, na realidade, não existe. Porém, sua indignação dava-se pelo fato de pedaços de papéis e cartões de crédito regerem o mundo como novos ditadores. E a massa prosseguia...

Mas ele já nem pensava nisso. Em nada mais. Tornou ao apartamento. O sol ainda era fortíssimo. Observou a janela, a aproximar-se. Nela, analisou a física da queda.

Vestiu-se com o terno que ganhara do dono de uma empresa em que trabalhou. Pôs Mrs. Dalloway em um dos bolsos. Virginia me entenderia, murmurava. Ajeitou-se como nunca antes. Parecia naquele instante como seus amigos. Vestido com roupa cara e, principalmente, de marca. Assegurou-se de que Gloomy Sunday estava a tocar. Voltou à janela. Seria daquele jeito o desfecho. Em segundos serei o que sou: nada. E pulou.

Em seus últimos instantes conseguiu ser livre como um pássaro.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 25/06/2023
Reeditado em 25/06/2023
Código do texto: T7822305
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