Ontem, um outro virá

Porque ontem aconteceu. Não posso acreditar. Porque ontem aconteceu o inesperado. Foi estranho e esperado ter acontecido. Foi um fato que, de certo modo, mais do que se pudesse imaginar, era, de algum modo, sem razão, era, como disse, esperado.

A noite chegou. Sem que a coruja anunciasse sua presença, a noite chegou. Sinos, ao longe, chamam para a missa àqueles que temem não chegar ao paraíso.

É triste saber que na ponte onde dormia o velho de cabelos vermelhos, é penoso, mas ninguém jamais o verá novamente.

O que terá acontecido, ninguém saberá. Todavia, sem razão de ser, sem que a única flor do jardim resista a ausência de outras flores, sabe -se, uma flor guarda a possibilidade do jardim. O velho de cabelos vermelhos, sem que alguém saiba, o velho da ponte não será visto. Em toda sua existência, desde sempre, o velho, que um dia foi jovem, porém, sempre ignorado, o velho, que já foi jovem, porém, invisibilizado, o velho se acostumou com sua ausência de existência.

A garota da doceria, a pobre e bela garota, filha rejeitada, filha esquecida, ela própria, ignorante e ignorada, sem saber, como se saber fosse perigoso, a garota da doceria, não ignora que é rejeitada, por isso, como se saber fosse perigoso, não saiu, ficou na doceria a espera do amor sonhado. O amor que ela espera todos os dias e toda as noites; por toda sua vida. Esquecida, rejeitada e ignorada, a garota da doceria,

não sabe, porque saber pode ser perigoso, ela, a garota da doceria, sonha, porque sonhar ainda é possível, ela não sabe, porque saber pode ser perigoso, ela não sabe, mas é rejeitada porque soube, e ficou perigoso, soube que é rejeitada porque nasceu quando não era pra ter nascido.

Ignorante e ignorada, nascida quando não era pra ter nascido, soube, e saber se tornou perigoso, soube que a coruja, ave da noite, tanto quanto aos amantes cabe saber que se amam, não se pode negar, porque negar o que se mostra às tantas permissões, em oposição ao que se nega à filha rejeitada, ela própria, ignorante e ignorada, a pobre moça da doceria, a espera do amor sonhado, rejeitada porque nasceu quando não era permitido, assim, chamadas a missa, as pobres almas tementes, não chegarão ao paraíso. Pobres almas, não almas rejeitadas, não ignoradas, porque ao paraíso, a quem vai ao Pai, tem a promessa do paraíso, à moça da doceria, ignorante e ignorada, não tem mãe, porque rejeitada, nasceu quando não era, não tem mãe, a garota da doceira, não terá o paraíso, não vai à missa, a garota, rejeitada, sem mãe, sem amor, ela própria, só, somente ela com ela, sem ninguém mais, não terá o paraíso porque só tem a promessa, nenhum outro, somente quem vai à missa, a garota rejeitada, ignorante e ignorada, não terá porque nasceu quando não era permitido nascer, a garota da doceria, sozinha, ela com ela, não sabe, é perigoso saber, a rejeitada, chora a dor do mundo, que é dela.

O quadro na parede. Apenas um quadro na parede. Artista anônimo, artista não conhecido, o quadro na parede, quadro de artista desconhecido, assim, sem nome, anônimo, não se nega, o quadro na parede, belo e pintado com esmero e perfeição, não se nega, o quadro é belo. É belo em sua própria beleza. O quadro na parede, pintado com esmero e perfeição, o quadro na parede realça estrelas numa noite estrelada porque Noite Estrelada, nome de outro quadro, belo em sua própria beleza, pintado com esmero. Van Gogh, o artista holandês, artista gênio, precursor do expressionismo, não se nega, ninguém nega, um gênio ignorado porque gênio pintor, precursor do expressionismo, ninguém nega, Noite Estrelada é a expressão do Belo na obra de Arte.

E de tantas e tantas, o homem caminhava no acostamento da rodovia, como se avançasse sem destino pré -determinado, caminhava por caminhar, o homem parecia um viajante, um homem do mundo, não um estrangeiro, mas um viajante, caminhava pelo acostamento. O homem carregava nas mãos, além de uma pequena bagagem de quem viaja sem destino certo, o homem carregava um pequeno, um quase buquê de rosas. Rosas lindas, rosas de cores tão vivas, rosas que denotavam uma quase resistência porque suas cores vivas, vermelho intenso, amarelo intenso e branco quase semelhante ao branco maís puro que se possa imaginar, o homem levava nas mãos um pequeno buquê de rosas e seguia sua caminhada como quem segue para algo, não sei. Caminhava para algo quase próximo ao encontro com o Divino, não sei.

Chego ao fim. O livro me acompanhou. Viveu junto a mim por noites insones. Um companheiro pontual, nunca faltou. Hoje cheguei ao fim. Devo deixar meu amigo. Meu amigo sincero. Outro virá. Outro será minha companhia. Cheguei ao fim. Por alguns dias vou continuar pensando no meu amigo. Quando outro chegar, uma nova amizade vai nascer. Esse eu terminei. Vou deixá-lo, não vou esquecê-lo. Hora de dormir. Vou dormir.