QUE PAÍS É ESTE?

Ele era apenas um bancário com salário miserável, horas extras forçadas, alvo constante de assédio moral. Um trabalhador brasileiro, enfim, fadado às agruras a que estão sujeitos todos os assalariados. Especialmente os bancários, cujas horas trabalhadas além do seu horário de expediente, as conhecidas horas extras sempre exigidas pelos banqueiros famintos por lucro, eram escamoteadas para a vala comum do esquecimento. E esse tempo trabalhado além do expediente normal era quase nunca recebido devido a ganância dos patrões. Como se vê, ele era apenas um cidadão da Pátria verde e amarela sujeito às vicissitudes próprias dos trabalhadores que labutam incansáveis para sustentar–se e à família apesar do capitalismo selvagem e sufocante.

Naquele dia, o que não era mais novidade, permanecera no banco até tarde da noite, o ponto eletrônico desligado mas fazendo serviços extras que não transitariam on line. Com ele, os demais colegas do setor sofrendo o mesmo peso da exigência . Estavam todos bastante cansados, como é de praxe acontecer para quem trabalha num estabelecimento bancário, já que vinham de um expediente movimentado no horário normal e tinham adentrado pela noite, sempre sob o atento olhar dos chefes de setores e do gerente geral.

Deu graças a Deus quando, finalmente, foram liberados e ele pode seguir no rumo de casa. As ruas da madrugada estavam frias. Consultou o relógio e suspirou. Não havia condições nem de repousar com serenidade porque em pouco um novo expediente o exigiria de pé. Restava-lhe apressar-se e aproveitar as poucas horas de sono que ainda poderia desfrutar. A companhia da família, nem pensar, os filhos já deveriam estar dormindo e a esposa, cansada e sonolenta em algum canto do sofá na sala.

O frio parecia fora do comum, além do normal. Ele levantou a gola da camisa branca manchada do suor daquele dia árduo e respirou o ar da madrugada indolente, espreitando à distância e pensando no achonchego do lar enquanto alguns poucos colegas entravam em seus carros velhos, davam partida e disparavam nas diversas direções da cidade. Ele não possuía carro, dava-se por feliz em ter uma bicicleta, embora naquele momento bem que viria a calhar ser proprietário de um automóvel. Que remédio! Montou sua bicicleta e saiu pedalando, enfrentando a fria brisa que lhe batia no rosto sonolento. O cansaço fazia-se visível em seu semblante abatido.

As ruas nas proximidaes do banco onde ele trabalhava estavam fracamente iluminadas, desertas e silenciosas, o céu límpido coberto por estrelas e um risco amarelado da lua minguante. O cenário se mostrava dominado por angustiante melancolia. Todos deveriam estar dormindo àquela altura do tempo.

Em seu caminho avistavam-se vitrines esmaecidas, gatos perdidos na vadiagem noturna, cães esqueléticos fuçando latas de lixo, postes monstruosos com suas perigosas tranças elétricas e uma menina pequerrucha...”Uma menina?” Às duas da madrugada? Surpreendido pelo inesperado da visão, ele parou quase sem querer acreditar, os olhos bem abertos, já sem sono, por muito pouco não tropeçou nos pneus da bicicleta.

Não havia dúvida, efetivamente uma menina magrinha, cabelos desgrenhados, ar decidido caminhava no sentido contrário ao seu, os braços cruzados denotando que sentia frio e ela se dava conta disso, embora não esboçasse qualquer gesto de aborrecimento por tal circunstância nem por encontrar-se sozinha, àquela hora inusitada, no centro da cidade. Ele não queria acreditar naquilo ante seus olhos, o quadro surgia de modo surreal. Então sentiu um leve frêmito de medo sulcar-lhe a espinha, arrepiando-se completamente ante a possibilidade daquela menina fazer parte de alguma manifestação sobrenatural. Sabe lá!, essas coisas são tão inexplicáveis e repentinas. Afinal de contas, aquela garota raquítica que se aproximava dele era realmente um ser humano palpável, uma alma do outro mundo ou apenas uma visão fugitiva qualquer? Se fosse verdadeiramente alguém de carne e osso, o que estaria fazendo sozinha no meio da madrugada? Resolveu tirar aquilo a limpo, e, apesar do temor que sentia e procurava esconder, esperou-a.

Por sua vez, indiferente, a menina não pareceu surprêsa ao vê-lo não demonstrou o mais leve traço de medo ou deu qualquer importância à sua presença. Essa atitude o surpreendeu ainda mais, óbvio, e feriu seus brios masculinos. Endureceu o rosto, pôs certa dose de rispidez na voz e começou a indagar mal a figurinha, sem nenhum interesse em sua pessoa, continuando a andar, passou ao seu lado.

_ Menina, o que você está fazendo na rua a essa hora da madrugada, prá onde está indo? – Ele perguntou, a voz um tanto trêmula.

Sem olhar diretamente para ele, a menina parou e respondeu num tom de inocência, certamente calejada na situação incomum que vivia:

_Vou pra fila do INSS.

O bancário ficou boquiaberto.

_ Fila do INSS, de madrugada?, perguntou.

_ É, sim, quem quer pegar ficha pra consulta tem que chegar cedo, senão perde a fila do médico. Minha mãe está doente e precisa se consultar.

_ Mas você não tem medo de sair à rua sozinha nessa hora da madrugada?

_ Tenho não, senhor, tô acostumada, Fico sempre na fila do INSS pra tirar ficha quando tem alguém doente lá em casa.

_ E seu pai?

_ Num tenho pai não, um homem matou ele com cinco facadas.

“Meu Deus, meu Deus!” , soluçou ele no mais profundo do seu âmago. Que País é este que deixa uma criança sair de casa em plena madrugada para pegar um fila da Instituto da Previdência? Que País miserável, indigno e deprimente é este? Uma garota tão frágil! Sua mãe, com certeza, deveria estar, naquele instante, cheia de aflição e temor, talvez até se culpando por mandar a filhinha inocente para uma fila que começava a se formar nas primeiras horas da madrugada silenciosa e perigosa. Que se passaria na mente ingênua daquela criança ao enfrentar a semi-escuridão das esquinas, as sombras da noite, os eventuais bêbados, assaltantes, bandidos das mais diversas estirpes? Uma pobre menina sem pai, a mãe doente, sendo obrigada àquela vergonha. Que País é este?

_ Quantos anos você tem?, ele perguntou.

_ Oito.

“Somente oito anos de idade, meu Deus!”

_ E o INSS lhe entrega a ficha que sua mãe precisa?

_ Não, é minha tia quem vem pegar mais tarde. Eu só guardo o lugar pra ela.

Durante alguns minutos se calaram os dois, ele completamente estarrecido diante daquela insensatez, sem saber mais o que dizer, indignado, os olhos quase marejados postos sobre a triste imagem da garota mirrada e solitária ao léu da madrugada. Já ela, pobremente coberta por um vestidinho de chitão azul com bolinhas brancas, chinela de borracha nos pés, o cabelo liso amarrado no estilo rabo-de-cavalo, adiante dele, esfregava as mãos para afastar o frio.

Por fim, trêmulo de revolta, abalado porque não tinha meios de consertar esses pequenos erros humanos que formam os grandes pecados do mundo, ciente de que também lhe cabia uma parcela de culpa por sua comodidade e também porque muitas vezes ele mesmo fechava os olhos a esses pequenos erros, sendo, em consequência, conivente com as desgraças cotidianas, ofereceu-se para acompanhá-la até a agência do INSS, remoendo todos esses aspectos deprimentes da natureza do homem, a omissão dos governos, a falta de atenção das autoridades, enfim, toda essa gama de equívocos causados por quem é legalmente responsável pelos cidadãos brasileiros mas fecha os olhos ao sofrimento do seu povo.

_ Quer que eu vá com você até o INSS?

_ Precisa não, brigado, vou só. Tô acostumada.

E se foi, encerrando a conversa.

O bancário, tartamudo, com raiva de si mesmo porque muitas vezes se recusava a participar das greves por comodidade, que nunca disse uma palavra crítica contra o governo federal sabe lá porque razão, chocado com tanta desigualdade marcante na vida do brasileiro, permaneceu ali, as lágrimas caindo sem ele perceber, sob a observação atenta das estrelas e da lua que minguava a pouco e pouco.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 17/12/2007
Reeditado em 24/01/2008
Código do texto: T781753
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