NOS DIAS MAIS FRIOS DEUS NOS AQUECE COM SEU AMOR.
O velho Salomon atendeu o rádio amador. A antiga luva de couro dobrou ao pegar o aparelho gelado. A neve caía lá fora, emoldurando a paisagem como um belo cartão postal de natal mas a realidade não tinha tanta beleza. A temperatura tinha despencado a noite, indo para dezoito graus abaixo de zero.
-"Salomon, posto três. Na escuta."
A voz não soou agradável do outro lado.
-"Limpe os trilhos, na curva norte. O expresso 357 vai passar ali, daqui a três horas."
Salomon trabalhava na ferrovia há longos vinte e sete anos. Esperava a tão sonhada aposentadoria.
-"Mas senhor....eu. Eu já vou, senhor."
Ele olhou para o relógio. Seis e vinte da manhã.
-"Essa juventude não vai pra frente. O cara está atrasado de novo."
Pensou.
Olhou o telefone. Olhou a agenda e discou nervoso. Na terceira tentativa, alguém respondeu.
-"O William não está."
Salomon estava nervoso.
-"Como assim? Senhora, estou cobrindo férias no posto da ferrovia. O rapaz do turno diário não veio ainda. Preciso ir embora e dormir."
Um silêncio do outro lado.
-"Vou ligar pra ele. Tenha paciência." Salomon virou a garrafa de café vazia. A mochila pronta pra ir embora. Teria de andar quatro quilômetros até a vila. O telefone soou.
-"Salomon, é o William. Velho, o Galaher está doente. A esposa dele me ligou e o levei até o hospital de San Thomas."
Salomon engoliu em seco.
-"É feriado, as estradas estão cheias de neve. Não posso levar ninguém aí, por favor."
Salomon respirou fundo.
-"Está certo. O expresso está vindo, senhor. Me traga um almoço e uma garrafa de café. Por favor, avise a Anne que vou dobrar."
William sorriu.
-"Você merece mais que isso, Salomon. Eu levarei pois você é especial. Fazemos pelo Galaher, que espero fique bem. Estou saindo do hospital e passarei na sua casa pra avisar a Anne, pode deixar."
Salomon desligou e vestiu as botas de trabalho. A pá no ombro. O rádio amador na cintura. Ele caminhou pelos trilhos por meia hora, até chegar na curva norte. Perto do morro Laredo, a neve descia e cobria os trilhos, deixando o local perigoso para os trens. O vigia tinha que ir e limpar os trilhos.
Era o único jeito pra evitar um enorme acidente. Salomon tinha pouco tempo e um enorme esforço a frente. A experiência era sua arma, além da força nos braços.
-"Primeiro, tire a neve dos lados." Era como se escutasse a voz de seu falecido pai, lhe dando as instruções.
-"Tudo fica fácil, se agir com disciplina e sabedoria. A sabedoria se alcança com a prática, com o tempo. Não peça grandes coisas a Deus, filho. Peça sabedoria apenas, ela basta."
Salomon era adolescente quando auxiliava o pai na ferrovia, em dias como aquele. Quando a neve caía forte, o adolescente Salomon corria para a guarita, para ajudar o bom Frank a limpar os trilhos.
Um de cada lado dos dormentes, com a pá. Salomon fez dezoito anos e foi contratado pela ferrovia.
-"Uma coisa positiva desse esforço é que o frio passou. Deu até calor."
As costas e os dedos doíam. Salomon olhou pra trás e teve orgulho de si mesmo. Os trilhos estavam limpos. Tinha tirado dois galhos, que desceram com a neve.
-"Posto três para a central. Na escuta, central? Posto três. A curva norte está liberada."
A resposta veio.
-"Central falando. Perfeito posto três. Anotado."
Salomon voltou devagar pra guarita. Os pés afundando na neve macia. Fechou a porta pro vento feio não entrar.
-"Há séculos pedimos, em vão, uma tevê nessa guarita. Bem, é a vida."
Ele tirou as botas, as luvas de couro e sentou-se na cadeira de balanço. Cobriu as pernas com a coberta e pegou a Bíblia. Meia hora depois, acordou com o apito do trem de ferro. A Bíblia estava caída no chão. Mexeu na mochila e achou uma maçã. Resolveu limpar a guarita pra passar o tempo. Quase uma da tarde. As batidas na porta.
Ele abriu e viu dois rapazes.
-"Salomon?!"
Tinha visto aqueles dois na praça Roosevelt e não era bom sinal.
-"Vou ser assaltado."
Pensou, notando as unhas pretas dos dois, que sabia ser usuários de drogas.
-"Sou eu."
Olhou para o rifle, atrás da porta, já temendo o pior
-"Trouxemos seu almoço. O senhor William ficou preso na estrada. Caiu uma ribanceira, perto da entrada da cidade. Nos oferecemos pra trazer seu almoço."
Salomon notou os tênis rasgados dos dois.
-"Vieram até aqui a pé? Por mim?!"
Os rapazes sorrindo.
-"Entrem."
Ele colocou mais lenha na lareira.
-"Wiliam! Ele colocou pães na cesta. E chá."
Solomon sorriu.
Um dos moços tremia.
-"Aqui tem comida pra um batalhão. Vamos dividir."
Os rapazes queriam ir.
-"Já almoçaram?"
Eles ficaram quietos.
-"A gente não almoça, tio. Ninguém gosta da gente."
-"Todo mundo tem valor. Olha, se arriscaram e vieram até aqui, na nevasca. Sou grato a vocês."
Salomon os cumprimentou.
Ficaram horas conversando. O rádio amador chamou.
-"Posto três. É o William.
Gilbert vai lhe render as quatro, o liberando mais cedo."
Salomon ficou contente.
-"Grato, senhor."
Um dos rapazes apontou o relógio na parede.
-"Só tem duas horas pela frente."
Um deles se chamava Túlio.
Salomon conhecia o pai dele, Norris. Tinham trabalhado juntos na pedreira. O outro era Renan, natural de Boston. Era órfão e procurava emprego de garçom.
-"Vou falar com meu primo Carl. Ele tem um restaurante na cidade e talvez o aceite."
Renan sorriu.
-"Seria ótimo, senhor Salomon. Tudo que quero é um emprego."
O rádio amador chamou de novo.
-"Atenção. Rodovias e estradas liberadas pelas máquinas da prefeitura. Tudo normalizado."
Salomon ergueu as mãos, em oração. Gilbert chegou ao posto de trabalho.
-"Pode ir, Salomon. Vejo que teve companhia."
Ele cumprimentou os rapazes.
-"Venham quando quiserem, é bom ter companhia a noite."
Disse Gilbert a Renan e Túlio. Eles acompanharam Salomon até a cidade.
-"Temos um bom trecho até a vila, amigos."
Estava escuro quando Salomon chegou em casa. Ele abriu a porta e sorriu.
-"Que cheiro maravilhoso, Anne."
A esposa o beijou, secando as mãos no avental.
-"É uma simples sopa, querido."
Ele deixou as botas na entrada.
-"Discordo. É a melhor sopa do mundo e sejamos gratos por isso."
Após um banho, a janta com a esposa e a filha.
-"Estava pensando naqueles rapazes da praça. Ficariam felizes e aquecidos com um pouco dessa sopa."
Anne concordou.
-"Está muito frio. Podemos fazer mais. Poderiam ficar na casa dos fundos, está vazia."
-"É uma ótima idéia."
Salomon, Anne e Sandra chegaram a praça.
William e o prefeito estavam lá.
-"Parece que não fomos os únicos que pensaram nas pessoas em situações de rua, felizmente."
Disse Wiliam, distribuindo lanches e cobertores aos moradores de rua.
-"Agradecemos seu convite, Salomon. Vamos todos ao ginásio de esportes, onde o prefeito vai nos acolher.
Nos dias mais frios, Deus nos aquece com seu amor."
Disse Renan.
Salomon encontrou o chefe William, no corredor do hospital.
-"Acabei de ver o Galaher. Terá alta em dois dias. Preciso de gente nos postos sete e oito."
Salomon lembrou-se dos rapazes da praça.
-"Tenho duas pessoas, se quiser. Dois rapazes fortes e prestativos."
William sorriu.
-"Quem sabe não serão efetivados pela ferrovia? Vou indo, amigo."
Duas semanas depois, Salomon recebeu a carta da sua aposentadoria. Inverno em Praga.
A limusine parou em frente a catedral.
-"Higor, me espere aqui."
O motorista obedeceu.
A lufada de vento gelado entrou no carro, assim que Gorski abriu a porta e saiu. O motorista meneou a cabeça, negativamente, não concordando com a cena que via.
Seu patrão tinha acabado de sair da ópera e agora abraçava uma moradora de rua. A mulher tinha uma garota do lado.
-"Esse idiota sempre se rebaixando. Vai acabar pegando uma doença desses farrapos humanos. Não devia se misturar a essa ralé."
Gorski retornou.
-"Entrem. Higor, essa é a senhora Filmor, seu falecido marido trabalhou nas minas de nossa família."
A mulher sorriu sem jeito.
-"A vida toda."
Gorski puxou a garota de doze anos. Ela ficou na ponta do banco de couro, preto e brilhante.
-"Sente-se direito, filha. Se sujar o banco, o motorista limpa depois, ganha uma fortuna pra isso. Tem doces aqui. Minha filha Julie sempre esconde balas aqui."
Ele riu e buscou as mãos da mulher.
-"Preciso de uma ajudante de cozinha, senhora Filmor. O salário não é grande coisa mas poderá dormir na casinha perto do estábulo, com as outras empregadas da casa. Terá uma cama quentinha e alimento. Que acha?"
A mulher chorou.
-"Eu aceito. Estou velha mas tenho forças pra trabalhar. Minha neta pode ficar também?"
Gorski olhou a menina com carinho.
-"Certamente. Não terá que trabalhar pois é menor. Poderá estudar com minha filha, ser sua companhia. Julie sente falta de amigos."
A garota estava feliz.
Gorski notou as roupas finas e remendadas das duas. Como suportavam dormir naquele mármore frio da catedral, sobre papelões apenas?
Pensou ele, vendo que a garota o observava. Ela tinha belos olhos verdes num rosto maltratado e triste. Os lábios rachados pelo frio.
-"Meu filho se foi. Morreu em Paris, nas obras da torre Eiffel. Era um rapaz trabalhador e inteligente. A esposa dele se casou com um russo, meses depois.
Não gostava do beberrão Ostapenkko mas o fez pra se manter. Foram embora pra Moscou e deixaram Alexia comigo. Perdi a casa há dois anos, a rua me acolheu."
Gorski fez cafuné na garota.
-"Acontece muito. Felizmente ela tem uma avó de fibra e coragem, certo?"
A mulher desatou a chorar.
-"Era muito bom nos albergues mas, alguns marmanjos queriam fazer mal a menina."
Ela abraçou a neta com força. A limusine entrou na residência que mais parecia um palacete. O mordomo se aproximou.
O motorista saiu e abriu a porta para seu patrão. A mulher e a neta desceram.
-"Nunca fui tão bem tratada. Deus o pague, meu jovem."
Gorski conversou com o mordomo.
-"Zakky, acomode a senhora Filmor e a neta com as empregadas da casa, sim? A senhora Filmor será auxiliar de Dimitrieva na cozinha. Apresente a menina a governanta Helgga, será dama de companhia de Julie, certo? Quero que recebam roupas novas, além dos uniformes."
O mordomo abaixou a cabeça.
-"Assim será feito, meu senhor."
Gorski entrou. A esposa estava com visitas.
-"Gorski, querido. Tina e Ambrosia vão pra Paris, semana que vem."
Ele as cumprimentou.
-"Fico feliz. Viajar é fantástico."
A mulher notou a mulher e a neta atrás dele.
-"Me desculpem. Apresento-lhes a senhora Filmor, que irá ajudar na cozinha. A menina será ótima companhia pra Julie."
A esposa se aproximou dele.
-"Querido, Dimitrieva já tem quatro ajudantes."
O rapaz sorriu.
-"Sei disso. O chanceler quer levar as ajudantes Sonya e Francielle com ele. A senhora Filmor suprirá as faltas delas." Julie gritou.
Gorski foi para o quarto. A governanta surgiu, no topo da escada.
-"A menina Julie não está bem."
As visitas se foram. Gorski ligou para o médico. Horas depois, Gorski levou a senhora Filmor e a neta pra conhecerem a filha. Julie ficou encantada com Alexia. Eram da mesma idade.
-"O médico recomendou repouso. A mesma bateria de remédios de sempre."
Disse Gorski a esposa. Helen Filmor notou a palidez da menina. Alexia estudava com Julie. Após as aulas particulares, Alexia dava conselhos a outra, motivada por sua mãe.
-"Chame-a pra tomar sol, diariamente. Alexia, faça ela arrumar a cama, se mexer. Incentive a menina a comer frutas, verduras. Em pouco tempo, a sedentária e doente Julie terá vigor, fortaleza e será outra pessoa."
Gorski e a esposa ficaram surpresos, três semanas depois, quando Julie desceu pra tomar café com eles.
-"Oh! Temos visita para o café, querida. Uma visita especial."
Alexia perguntou por Julie.
-"A menina foi a feira, com a avó." Respondeu a governanta.
-"Ainda não comprei a madeira, minha pequena senhora. Terei que pedir autorização ao senhor Gorski."
O casal olhou para o mordomo.
-"Madeira? Pra que, filha?"
A menina pegou uma maçã, deixando a torta de chocolate de lado, algo impossível antes da chegada de Julie.
-"Quero uma casa de bonecas na árvore, com escada e teto. Toda rosa."
Gorski estava feliz pois via ânimo nas palavras da filha.
-"Que maravilhoso. Estou ansioso pra ver essa casa da árvore, filha."
Julie quis voltar a frequentar a escola, pra fazer outros amigos.
-"Assim, o papai poderá destinar o dinheiro gasto na minha educação particular pra auxiliar as instituições de caridade. A escola é ótima, perto daqui e Julie estudará na minha sala. Iremos e voltaremos juntas."
A governanta riu.
-"Você pensou nisso sozinha?"
Julie sorriu.
-"Alexia me ensinou. Ela é da minha idade mas é muito mais sábia que as amigas de mamãe."
A governanta não segurou o riso.
-"Disso não discordo. Você está de parabéns, minha pequena senhora. Fico feliz de ver sua saúde melhorar."
Julie a abraçou.
-"Sempre a vi como chata, bruxa até, senhora Helgga. Julie me disse que a senhora é excelente profissional, não costuma sorrir pois tem uma vida difícil e cheia de trabalho e responsabilidades."
Helgga estava surpresa.
-"Minha filha mora em Salamanca, na Espanha, com meus três netos. Não os vejo há seis anos e morro de saudades. Tenho que cuidar de meu pai e das coisas por aqui senão..."
Julie a interrompeu.
-"Senão iria embora, pra ver seus netos."
A governanta enxugou as lágrimas.
-"Certamente. Eu poderia ir agora, já que a minha pequena senhora Julie está bem. Está até comendo frutas e brócolis."
Julie sorriu.
-"Como porquê Alexia disse que faz muito bem. Não é gostoso mas é saudável. Em breve, a senhora verá seus netos.
A Virgem Maria vai ajudar."
-"Virgem Maria?!!
A minha pequena senhora agora reza, fala em Virgem Maria desde quando?"
A governanta estava admirada.
-"Alexia me ensinou a rezar. Passamos bom tempo rezando, sabia?"
Helgga saiu do quarto, após verificar o aquecedor. Alexia chegou da escola e foi ver a avó, que atendia alguns entregadores.
-"Não vai acreditar, vó. A escola tem o nome do tataravô da Julie. Ela é tataraneta do arquiduque."
A mulher não se surpreendeu.
-"São pessoas ricas, de sobrenome, história e posses mas a verdadeira riqueza vem do espírito, do caráter, minha filha.
O senhor Gorski é um bom homem, sempre nos tratou como iguais. Ouço comentários de como sua presença tem feito bem a Julie, você só tem a ganhar sendo ótima companhia."
Gorski conversava com a esposa. Julie e Alexia estavam na sala ao lado, montando um quebra cabeças.
-"Está decidido, as duas irão com o chanceler pra Salamanca. Elas irão ganhar bem.
O chanceler gostou delas."
Julie foi até o pai.
-"Nossa governanta tem netos em Salamanca. Faz tempo que não os vê." Gorski estava surpreso.
-"Não sabia, filha."
No outro dia, Gorski conversou com Helgga.
-"Se quiser, posso antecipar sua aposentadoria. Assim, poderá seguir com o chanceler pra sua nova residência em Salamanca. Ele vai precisar de uma governanta lá."
Helgga não acreditava que o patrão se interessava por ela.
-"Isso seria maravilhoso mas não posso deixar a chefia da vossa casa.
Há muito trabalho aqui."
Gorski sorriu.
-"Agradeço sua preocupação, tem sido uma excelente governanta. Família é muito importante e fique a vontade pra ir a Salamanca, viver com os seus.
A senhora Filmor poderia cuidar de tudo, já que tem sido sua assistente." Helgga ficou surpresa.
-"De fato, a senhora Filmor me ajuda muito. Sabe de tudo na residência e é excelente profissional."
Duas semanas depois, Gorski convocou os empregados e anunciou as mudanças na residência. A senhora Filmor não sabia de nada e ficou feliz pelo cargo.
Ficou triste por ter que ficar longe de Helgga, a quem tinha amizade mas feliz, por ela poder viver com os netos. Julie abraçou Helgga, na despedida na estação de trem.
-"Mande fotos, senhora Helgga."
Julie estava acompanhada do pai e de Alexia.
-"Que frio. Quero chegar em casa e tomar um chá bem quentinho.
O que há de melhor que um chá no inverno?"
Julie levantou o dedo.
-"Chá quente e amigos maravilhosos?" Alexia foi abraçada pela avó.
-"Nos dias mais frios,
Deus nos aquece com seu amor."
FIM