O olhar da estátua
O hóspede desce as escadas, passa pela recepção vazia, vai até o pátio do hotel, saca o maço de cigarros, acende um, traga, expira, e então pressiona com força os olhos sulcados pela insônia habitual. As reuniões do dia seguinte serão uma mistura de bocejos contidos e raciocínio desconexo, plasmada pelo sabor de café no fundo da língua.
Suspira, observa o pátio como se fosse a razão de estar ali àquela hora da madrugada.
Tingido pela noite e pelos restos de chuva, o pequeno jardim interno é bem menos amigável do que nas fotos do site de agendamento. E no centro, no meio de uma fonte, uma estátua, que, como toda forma humana inanimada, inspira certa desconfiança quando na penumbra.
O hóspede vai até ela, para em frente, olha com atenção.
- Cuidado, se tu olhar muito, ela vai olhar de volta.
É o recepcionista, um velho encurvado, surgido sem avisar, e que ri do próprio aviso.
- Já olhou pro senhor? - O hóspede devolve.
- Ah! A gente não chega nessa idade sem que isso aconteça. - Novo riso.
- Entendo.
O velho ri uma terceira vez, agora das poucas palavras do hóspede, desconfia não ter encontrado um bom prosador, então dá boa noite e some por um corredor.
Já o hóspede, fica ali; encara a estátua, imagina se ela olhar mesmo de volta.
O que ela diria com seus olhos marmóreos? Reclamar do cansaço de estar sempre na mesma posição? Do peso do vaso que carrega sem ir a lugar algum? Do jardim que a contém? Das rachaduras que vão da cabeça aos pés? Dos rebocos desajeitados para garantir que continue, de algum modo, sendo estátua até um limite indefinido, apesar das rachaduras?
O hóspede não deixa de olhar a estátua um instante sequer, até que desiste e dá a última tragada no cigarro.
Quando volta e passa pela recepção, o velho está lá, sorri e pergunta:
- E aí, ela olhou de volta?
O hóspede tem aquele sono sem sono, logo, pouco humor disponível; por isso, depois, já no quarto, ainda fitando insone o teto, ficou tentando entender de onde veio a resposta dada ao velho recepcionista:
- Sim, olhou.